25/11/2007


Mauro Almeida
  Os usos ritualizados da bebida conhecida entre outros nomes como “ayahuasca” saíram do âmbito das sociedades indígenas amazônicas para se difundirem, seja entre seringueiros na floresta, seja sessões de cura de vegetalistas andinos, seja em cultos urbanos espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.

  Esse e o fenômeno que este livro aborda, com um quadro ao mesmo tempo comparativo e multidisciplinar, cheio de informações e de perspectivas. Certamente suscita muitas questões de análise e interpretação, motivadas entre outras razões pelo fato de tratar em um só volume do xamanismo indígena sul-americano, das religiões criadas por seringueiros da Amazônia, e do uso de plantas de poder associado a práticas terapêuticas e ao chamado neo-xamanismo.

  Esse volume retoma o estado da arte desse conjunto de questões. Ele trata principalmente do que Jean Langdon (1988) chamou de “xamanismo genérico”, e da re-utilizaçao das plantas psicoativas de origem indígena e sul-americana em diferentes contextos culturais. Esse ponto deve ser destacado, pois embora o livro contenha expressivas contribuições à etnologia indígena (nos artigos de Jean Langdon, Barbara Keifenheim e Pedro Luz), a sua contribuição mais extensiva são os capítulos que mapeiam o que Beatriz Labate chamou de campo das religiões ayahuasqueiras brasileiras e suas ramificações neo-xamánicas.

  Talvez sejam cabíveis alguns comentários sobre as relações entre esses vários contextos, sobre as quais o volume nos convida a refletir. A ayahuasca e bebidas similares são utilizadas por diferentes populações indígenas em um arco que vai das nascentes do Ucayali às cabeceiras do Rio Negro. Ao longo desse arco habitado por povos de refinada farmacologia e ricas cosmologias, povos indígenas dos troncos lingüísticos Pano, Aruák e Tukano parecem compartilhar uma filosofia da natureza segundo a qual existem diferentes espíritos encarnados nas pessoas, nos animais e nas plantas, alguns ligados ao corpo e outros separáveis dele - como mostram Pedro Luz, Jean Langdon e Barbara Keifenheim neste volume. Os xamãs teriam a capacidade de ver esses espíritos e de se transformarem eles próprios em diferentes seres. O capítulo de Barbara Keifenheim enfatiza o fato de que tal capacidade, ajudada pelos similares da ayahuasca, não é privilégio de xamãs. Xamãs e não-xamãs utilizam-se da ayahuasca (nixi pae, yahe, kamarampi, caapi) como operadores que, agindo sobre o corpo, permitem o trânsito entre o mundo ordinário e a realidade verdadeira onde vivem os espíritos, como no sonho e na morte; mas, ao contrário do que ocorre na morte, de maneira reversível, e ao contrário do que ocorre no sonho, de maneira controlada. As substãncias psicoativas, portanto, possuem um papel, ao lado dos sonhos, de danças, do canto e de outras técnicas, como operadores que modificam o corpo e a mente, tanto por exacerbar a experiência sensível como ao abrir caminho para viagens no tempo e no espaço e revelar a existência dos seres que habitam o mundo verdadeiro (ver Robin Wright 1998, pp. 75-94; Langdon 1996, p. 28).

  Segundo Eduardo Viveiros de Castro, o perspectivismo ameríndio coloca a ênfase não na oposição entre um mundo visível e um mundo invisível, e sim na idéia de que o mundo humano se prolonga no mundo dos animais e outros seres que chamamos de naturais - sendo então todos, humanos e animais, equivalentes entre si, mas associados a diferentes perspectivas, vinculadas a corpos distintos, a diferentes roupas ou hábitos. O xamã seria então um viajante em trânsito, não entre mundos, mas entre corpos capazes de adotar perspectivas alternadas, todos eles cidadãos de um mesmo mundo (Viveiros de Castro 1996): como se fossem antropólogos capazes de mudar de perspectivas ao se vestirem como os nativos.


1 comentários :

Anônimo disse...

Adorei o Blog!
Parabens!!!
grande abraço!