Pablo Nogueira
Publicado na Revista Galileu
Edição 203 - Jun de 2008
A
ayahuasca conquista adeptos de outras religiões e vive seu momento de
maior expansão e reconhecimento. Mas a bebida sagrada segue polêmica,
no Brasil como e em outros países
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Comunhão de bens: noite de ritual do grupo Beija-Flor de Lótus, que combina elementos do Daime e do Hinduísmo |
O que têm em comum o ofício de baiana do acarajé, o frevo
pernambucano e a festa do Círio de Nazaré? Os três são "patrimônio
cultural imaterial brasileiro", título criado pelo governo em 2000 com
o objetivo de auxiliar na preservação de tradições populares. Apenas 12
manifestações culturais receberam esse status, sendo que Bumba Meu Boi
e o queijo Minas aguardam na fila. Em maio surgiu um novo candidato: o
uso religioso do chá ayahuasca, mais conhecido como Daime.
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O pedido foi feito durante uma visita oficial do ministro da Cultura
ao Acre, e tinha como porta-vozes políticos, religiosos e o governador
do estado, Binho Marques (PT-AC). A reação de Gilberto Gil foi
positiva: "espero que possamos celebrar, em breve, o registro do
ayahuasca como patrimônio cultural da nação brasileira". A imprensa
nacional rapidamente repercutiu as palavras do ministro. Alguns
veículos apenas registraram a iniciativa, mas outros questionaram a
idéia, na linha "bebida alucinógena pode virar símbolo nacional",
incitando comentários pró e contra internet afora.
Tudo somado, o episódio mostra duas coisas: 1) Após quase oito
décadas de existência, as religiões ayahuasqueiras vivem seu melhor
momento. Assimiladas por outras fés e reconhecidas pelas autoridades,
vêem seu número de apedtos subir 10% ao ano; 2) Todo esse ciclo de
expansão é ignorado pela maior parte da sociedade brasileira, que
continua desconfiando do uso de uma substância psicoativa de forma
religiosa.
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Discurso: "o
uso religioso da ayahuasca tem apelo mundial, que é a preservação da
floresta", diz a deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC). Abaixo ela posa
em um pé de mariri (ou jagube), uma das plantas que compõem o chá |
Para tentar reverter esse quadro realizou-se em maio, em Brasília, o
II Congresso Internacional da Hoasca. O encontro foi organizado pela
União do Vegetal, que junto com o Santo Daime e a Barquinha, é uma das
três religiões ayahuasqueiras brasileiras. Também participaram membros
das outras duas correntes, e o congresso tornou-se uma defesa da
religiosidade baseada no chá. "Essa é a religião da floresta", disse no
evento a deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC). "Queremos que o
mundo reconheça nossa religiosidade, porque o Brasil não conhece a
Amazônia." De formação católica, foi ela que iniciou a articulação do
pedido de reconhecimento entregue a Gil, embora jamais tenha
experimentado a bebida.
A mais conhecida das três religiões do chá é o Santo Daime. A menos
conhecida é a Barquinha, que praticamente não se expandiu para fora do
Acre, onde surgiu. A que tem mais fiéis é a União do Vegetal (UDV). De
estrutura centralizada e hierárquica, foi criada em 1961, em Rondônia,
pelo baiano José Gabriel da Costa (1922-1971), chamado Mestre Gabriel.
Sua doutrina é cristã e reencarnacionista, e eles chamam o chá de
"hoasca" ou de "vegetal".
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Legitimidade:
palestrantes dos EUA e do Canadá fazem videoconferência no II Congresso
Internacional de Hoasca, realizado em Brasília para divulgar as
religiões do chá |
A UDV manteve um ritmo lento de crescimento durante boa parte de sua
história e em 1998 contava com pouco mais de 6 mil adeptos. Uma década
depois, esse total está próximo dos 15 mil, sendo que alguns participam
de "núcleos" e "distribuições" (como chamam seus templos) sediados na
Europa e nos Estados Unidos. O antropólogo Sérgio Brissac, que
pesquisou a UDV em sua dissertação de mestrado no Museu Nacional, diz
que o crescimento da religião está ligado ao próprio "espírito do
tempo" que vivemos. "Frente ao relativismo contemporâneo, a dinâmica do
ritual e a doutrina da UDV apresentam a alternativa de um conjunto
sólido de verdades. Além disso, há uma busca por uma experiência
intensa do sagrado, e a vivência com a ayahuasca, unida ao ritual e aos
ensinamentos, oferece essa oportunidade", diz. Ele não aponta um perfil
definido de freqüentador, mas nas grandes cidades predominam pessoas de
classe média e formação universitária.
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Conservação: o
chá é guardado em geladeiras, geralmente em garrafas PET, e servido à
temperatura ambiente. Costuma ser servido em copos de vidro, e alguns
ritos envolvem mais de uma dose |
Expansão e exposição
A UDV tem capitaneado boa
parte dos esforços para que o uso religioso do chá seja visto como algo
legítimo também fora do Brasil. O caso mais controverso ocorreu nos
Estados Unidos. Entre 1999 e 2006 a UDV enfrentou uma longa batalha
jurídica a fim de preservar o direito de consumir o ayahuasca, que
estava sendo contestado pelo governo americano. Durante esse período,
os membros mantiveram suas práticas rituais (veja quadro "Uma sessão da
união"), mas bebendo água em vez de chá.
Em janeiro de 2006 a Suprema Corte anunciou um veredicto favorável
ao grupo, e o ayahuasca voltou a ser consumido. À frente da batalha
pela legalização estava Jeffrey Brofman, representante da UDV nos
Estados Unidos. Ele recusou entrevistas a veículos como New York Times
e CBS na época do veredicto e falou a Galileu sobre sua participação no
Congresso em Brasília. De origem judaica, conheceu grupos indígenas que
fazem o uso religioso de psicoativos antes de chegar à UDV, em 1990.
Hoje ele comanda 180 adeptos nos EUA.
A penetração do Santo Daime no exterior é bem maior. Estados Unidos
(incluíndo Havaí), Canadá, Espanha, França, Itália, Suíça, Irlanda,
Alemanha Inglaterra, Holanda e Japão têm grupos ativos. Como explica o
antropólogo Alberto Groisman, da UFSC, o processo se iniciou com a
visita de estrangeiros à região amazônica, nos anos 1970, e continuou
na década seguinte, quando os daimistas brasileiros passaram a ser
convidados a viajar para realizar rituais e ensinar os fundamentos da
religião.
Desse intercâmbio foram se formando grupos estáveis que se reúnem
para praticar rituais como o bailado (ver quadro "Um bailado no Santo
Daime") e cantar hinos religiosos que versam, entre outras coisas,
sobre a espiritualidade da floresta amazônica. Sabe-se que eles atuam
em diferentes condições legais, dependendo do país. Na Inglaterra os
trabalhos são realizados secretamente, a fim de não chamar a atenção
das autoridades. Na Espanha, dois daimistas brasileiros foram presos em
2000, acusados de tráfico de drogas, mas hoje a religião está inscrita
no cadastro nacional de entidades religiosas.
Nos EUA, os daimistas pleiteiam os mesmos direitos já outorgados à
UDV. Na França, após uma vitória judicial inicial em 2005, o governo
incluiu os princípios ativos do chá na lista de estupefacientes,
tornando ilegal seu uso religioso ou não. "Cada país reagiu à chegada
do Daime conforme o estabelecido por suas normas nacionais de controle
de drogas, aplicada conforme a demanda que aparecia", explica Groisman.
Um bom exemplo desta mudança de atitude foi o caso da Holanda. Em
1999, dois daimistas foram presos devido ao uso religioso da ayahuasca.
Dois anos depois, após um processo judicial que envolveu a consulta a
médicos, psicólogos, teólogos e antropólogos, os rituais do Daime foram
liberados. Groiman viveu algum tempo na Holanda acompanhando as igrejas
daimistas do país. "O que mais me impressionou foi a dedicação dos
holandeses em seguirem as formas e conteúdos tradicionais do Santo
Daime. Eles cantavam os hinos em português, muitos estavam aprendendo a
língua ."
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Gringo no chá: Jeffrey
Brofman, desde 1992 representante da União do Vegeral nos Estados
Unidos, diz que lá o chá reúne "médicos, psicólogos, advogados, gente
de diferentes perfis profissionais, sociais e étnicos" |
Chá em transe
Mas em certas "igrejas" (como são
chamados os templos do Daime) a mistura já é norma. "Acho que o Daime
caminha para se tornar cada vez mais eclético", diz a antropóloga
Beatriz Labate, autora de quatro livros sobre o uso religioso da
ayahuasca e de outras substâncias psicoativas ". No exterior há igrejas
que adotam influência hare krishna e de terapias alternativas. Em
Assis, na Itália, há uma influência forte da mitologia local, ligada a
São Francisco."
Aqui no Brasil algo semelhante aconteceu a partir da popularização
do uso religioso da ayahuasca nas grandes cidades do Sudeste. É cada
vez maior o número de grupos religiosos que se baseiam no uso do chá
mas incorporam elementos diferentes daqueles propostos pelos fundadores
das três religiões. "Em 2000, pesquisando para o mestrado, encontrei 30
grupos em São Paulo; hoje deve haver pelo menos o dobro", diz a
antropóloga.
Talvez o exemplo mais conhecido dessa nova geração de usuários
religiosos seja o umbandaime, tendência que, como o próprio nome
sugere, busca uma aproximação com a religiosidade afro-brasileira. O
terapeuta Antônio Marques Alves Júnior defendeu em 2007 um mestrado na
PUC-SP sobre a aproximação entre Daime e umbanda. Alves ressalta que,
embora o fundador do Daime, o maranhense Raimundo Irineu Serra
(1892-1971), chamado Mestre Irineu, fosse negro, a religião que ele
criou não dava importância ao chamado transe mediúnico, comum nas
religiões afro. "Talvez ele tenha deixado a mediunidade de lado
intencionalmente, para escapar da perseguição religiosa que a própria
umbanda sofria no inicio do século 20", especula.
Irineu morreu sem apontar um sucessor. Após sua morte, um de seus
discípulos, Sebastião Mota Melo, chamado por daimistas de Padrinho
Sebastião, passou a liderar uma comunidade batizada de Colônia dos
Cinco Mil, perto de Rio Branco. Entre 1974 e 1980 esse grupo se tornou
um pólo de difusão do Daime para fora da Amazônia.
Ao chegar ao Rio de janeiro, no início dos anos 1980, o Daime atraiu o
interesse de praticantes de umbanda, inclusive mães-de-santo. A partir
desse trânsito, surgiu no Rio uma variante da religião. Nela, além dos
trabalhos "tradicionais" de Daime, havia espaço também para outros
rituais, onde o consumo do chá se ligava a "receber entidades". O
próprio Padrinho Tião, um ex-espírita, se interessou por essa vertente,
e seu filho, Alfredo melo, construiu rituais que exploravam a conexão
entre daime e umbanda.
"Muitos adeptos criticam essa aproximação, dizendo que isso não é
Daime", explica Alves, ele mesmo um "aproximador". Nos anos 1990, ele
abriu uma igreja daimista chamada de Reino do Sol, que se tornou
referência desse tipo de sincretismo em São Paulo. O hino oficial da
instituição diz que "O Daime é o sol da minha vida/e a umbanda é sua
filha querida", e lá realizam-se, além dos trabalhos "oficiais" do
Daime, rituais chamados de giras, com até 200 participantes, dos quais
as pessoas participam descalças e vestidas de branco, e nos quais o
ayahuasca facilitaria o transe mediúnico.
Às terças-feiras, o grupo de Alves realiza um ritual no qual, assim
como acontece nos centros espíritas, alguns indivíduos entram em transe
e recebem "entidades", que dão consultas grátis à população como
exercício de caridade. Antes de entrar em transe os médiuns podem beber
pequena quantidade de ayahuasca. E durante as duas horas que dura o
trabalho, um grupo de músicos canta suavemente hinos que misturam os
imaginários da umbanda e do Daime. Ao final, todos os participantes
formam uma roda e bailam e cantam hinos de inspiração daimista,
terminando o ritual com a oração de São Francisco. "Acho que essa nossa
síntese é um trabalho inovador. Sou umbandista tanto quando sou
daimista. Pertenço a toda religião que não se considera a única", diz
Alves.
UMA SESSÃO DA UNIÃO
Conheça as etapas do ritual seguido pelos adeptos da União do Vegetal |
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Os adeptos usam uniforme na maioria das sessões. O homem à esquerda
(quadro no canto superior esq.) está vestido como um mestre, nome dado
aos sacerdotes
1>>>A pessoa
encarregada de conduzir o ritual é chamada de mestre dirigente. Às 20h,
ele se põe em pé e anuncia o início da sessão. Todos ficam de pé. A
partir de agora, só ele pode falar livremente: os outros devem pedir
permissão a ele para falar 2>>>As pessoas formam uma
fila no sentido anti-horário e param ao lado do arco para receber o
chá. Cada um recebe o chá diretamente do mestre dirigente. Eles seguram
o copo com a mão direita,voltam a seus lugares e permanecem de pé
3>>>O
mestre dirigente fala algumas palavras rituais e todos bebem o chá. Os
mais graduados hierarquicamente bebem primeiro. Depois, todos sentam-se
em silencio
4>>>Enquanto se espera que os efeitos do chá comecem a se manifestar, escuta-se a leitura dos regulamentos internos da UDV
5>>>Após a leitura, o mestre dirigente entoa alguns cânticos, que visam colocá-lo num estado de inspiração espiritual
6>>>O
mestre percorre a mesa no sentido anti-horário perguntando à alguns se
elas estão sentindo os efeitos espirituais do chá, chamados de "força"
e "luz"
7>>>A partir daí,
os presentes fazem perguntas sobre a doutrina, que são respondidas pelo
mestre dirigente. Quem quiser, pode beber uma segunda dose do chá às
22h. O rito se encerra às 00h15 |
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Sincretismo: à
esquerda, momento do passe em ritual de umbandaime, que como diz o
nome, mistura umbanda e Santo Daime criado por Mestre Irineu,
representado à direita |
Passagem para a Índia
Outro exemplo
representativo de novo grupo é o Beija Flor de Lótus, que tem sua sede
nos arredores de São Paulo. Ele é dirigido pelo músico e terapeuta
Chandra Lacombe. Lá os rituais combinam alguns elementos do Santo
Daime, como orações cristãs, uso da ayahuasca e o canto de hinos, com
outros originários da espiritualidade indiana, tais como mantras,
posturas meditativas e música hindu. Um dos hinos que o músico compôs
diz assim: "É o sol e a Lua/ É Jagube e Rainha/ É o shiva e a shakti/ A
divina alquimia". "Jagube" e "Rainha" são os nomes que os daimistas dão
às plantas a partir das quais se faz o chá, e Shiva e Shakti são
divivindades da Índia.
Chandra começou a desenvolver o que ele chama de "linha unificada"
dez anos atrás. Até então, era apenas membro de um outro grupo
independente, no qual também se buscava aproximar o hinduísmo do Daime
-ou seja, ele já é a segunda geração desse tipo de sincretismo no
Brasil. Atualmente sua comunidade reúne 60 membros regulares. "A maior
parte são pessoas que estavam insatisfeitas com a doutrina do Daime.
Queriam mais espaço para abordar sua individualidade."
Já os que chegam ao grupo vindos das seitas hinduístas tradicionais
encontram a experiência mística associada ao chá. "Se consumido num
contexto ritualístico, ele é mais do que simplesmente um alterador de
consciência. Acreditamos que o mesmo estado poderia ser alcançado pela
meditação, mas a pessoa precisaria de muito esforço e disciplina para
chegar aos níveis rapidamente atingidos com a bebida."
Ao longo dos seus anos como líder de grupo, Chandra viajou por
diversos países coordenando rituais, onde formou um grupo regular de
adeptos. Alguns deles vêm ao Brasil para matar a saudade dos trabalhos
no Beija Flor de Lótus. É o caso de John, pseudônimo usado por um
terapeuta de um país escandinavo que prefere não se identificar, com
medo de que o governo de seu país descubra que o ayahuasca está
circulando por lá. Ele diz adorar "o Santo Daime tradicional", e vê o
trabalho de Chandra como uma parte legítima dele: "Se o Mestre Irineu
está incluído, para mim também é Daime". Discussões doutrinárias à
parte, ele ressalta a importância da experiência com o chá: "os
momentos de êxtase são a parte fácil. Difícil é quando você se
confronta com a sua sombra. É aí que o Daime é importante para mim, e
pode ser para outras pessoas. Às vezes penso que essa bebida poderia
curar o mundo."
UM BAILADO NO SANTO DAIME
Neste ritual, os participantes cantam e dançam e tem lugar marcado |
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1>>>Homens
e mulheres entram por portas separadas e se posicionam obedecendo a
alguns critérios. Num grupo ficam os homens casados e mais velhos. No
outro, os jovens casados e visitantes, e na próxima ala os jovens
solteiros. As mulheres serão distribuídas da mesma forma, de modo que
haja um espelhamento: os casados de frente para as casadas etc. 2>>>O padrinho é quem conduz
todo o trabalho da noite. Ele fica na primeira fila, na extremidade
direita. É ele quem diz as palavras que iniciam o ritual, e também as
que o concluem
3>>>Depois
de se anunciar o início do ritual, homens e mulheres formam duas filas
para receber o chá. Durante o bailado, que pode durar mais de 12 horas,
bebe-se normalmente uma dose a cada hora e meia ou duas horas
4>>>Os
ritos de bailado acontecem em datas específicas do ano. Em cada um
canta-se um conjunto específico de músicas. Essas músicas são chamados
hinos. Numa noite, pode-se cantar 200 hinos ou mais. Além de cantar, os
fiéis também dançam, realizando simultaneamente o mesmo passo
5>>>Os
hinos são cantados com o acompanhamento de instrumentos instrumentos
como violões e acordeões. Os músicos sentam-se ao redor de uma mesa.
Sua referência são as puxadoras, que dominam o hinário e vão "puxando"
as canções.
6>>>Chama-se
fiscal o adepto que tem a função de colaborar com o andamento do
ritual. Eles monitoram as filas, impedindo que o movimento das pessoas
abra claros nas fileiras.
Também prestam assistência às pessoas que deixam o salão.
• Em toda a igreja há uma cruz de caracala, símbolo da base cristão do Daime
•
Nos rituais de bailado usa-se uma roupa conhecida como farda branca. A
coroa das mulheres evoca a Rainha da Floresta, a entidade que apareceu
ao fundador do Daime. Nas mãos carregam um instrumento musical chamado
maracá |
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Para todos: o altar da Beija-Flor de Lótus é abençoado mestres hindus, mestre Irineu e Nossa Senhora |
Ainda polêmico
Segundo o psiquiatra Wilson
Gonzaga, são justamente os pequenos grupos independentes que preocupam
as autoridades que regulamentam o uso religioso do ayahuasca no país.
Ele é membro do grupo de trabalho interdisciplinar do Conselho Nacional
Antidrogas, criado em 2004 para estabelecer princípios éticos a serem
seguidos por todas as entidades usuárias do chá.
Na estrutura da comissão foram indicados representantes da União do
Vegetal, das diferentes linhas de Daime e dos independentes, e Gonzaga
entrou como representante desses últimos. "Os grandes, como a UDV ou o
Daime, possuem mecanismos fiscalizatórios para controlar a maneira como
o chá é utilizado. Já essas organizações novas, oriundas das maiores,
não tem". Ele acredita que a tendência é que o número de grupos se
reduza. "Estamos vivendo um momento de boom, mas com o tempo muitos
grupos desaparecerão. Ficarão os que realmente fazem uso ritualístico.
Só continuará bebendo ayahuasca quem souber porque está fazendo isso",
diz.
O fato é que uma das conseqüências desse boom é, justamente, a idéia
de que o uso religioso da ayahuasca possa ser considerado patrimônio
cultural brasileiro. Para Beatriz Labate, o que se passa agora com as
religiões que usam o chá pode ser comparado ao que já aconteceu, por
exemplo, com a capoeira. "Durante boa parte do século 20 a capoeira era
marginalizada. Aos poucos foi entrando nas academias, nas escolas e
hoje é um ícone do Brasil."
Ela diz que a percepção dessa religiosidade como um fator de
identidade cultural é mais forte na Amazônia e particularmente no Acre,
onde os comerciais de TV que estimulam a visitação ao estado exibem
cenas de daimistas bailando. "Essas religiões foram perseguidas de
várias formas por décadas. Se hoje o governador do Acre e o ministro da
Cultura estão se manifestando favoravelmente a elas, é porque ocorreu a
expansão desses grupos. Ninguém ia dar a menor bola se fosse apenas um
fenômeno regional."
"MUITO DENTRO DE MIM MESMA"
A monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista, conta como foi sua experiência com o chá ayahuasca |
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Coen-xistência: a monja budista aprovou a experiência com o chá sagrado |
"Um membro da minha comunidade fazia parte um grupo religioso que
tomava chá de ayahuasca e me convidou para uma reunião festiva de
Natal, onde se podiam levar convidados de fora. Convidei duas alunas
minhas e fomos as três. Era um sítio pertinho aqui de São Paulo, nós
chegamos já era noite. Fomos recebidos por uma senhora quer era líder
deste grupo. Sentia-se muito a presença dela, a força dela como
liderança. Havia muitas crianças, adolescentes, famílias, e isso
me surpreendeu. Entramos numa sala muito grande, muito cheia de
pessoas, e nos deram copinhos com um chá - um chá cor de chá mesmo.
Primeiro passaram umas frutas, cada um pegou um pedacinho e depois
todos juntos comungamos deste chá, bebemos juntos. Me lembra muito o
que nós fazemos no budismo, como as nossas cerimônias de alimentação,
de chá. Então isso foi muito bonito pra mim, né?
Nos
sentamos e havia muitas músicas que eram muito agradáveis, mas a minha
preocupação era à líder do grupo. Como eu sou líder de uma comunidade,
me interessava ver como ela liderava. Como era Natal era tudo
relacionado a Jesus. Havia uma fotografia de um senhor [Mestre Gabriel]
da Amazônia, alguma coisa assim, que seria o fundador desta ordem, um
senhor de bigodinho assim. O nome dele era falado algumas vezes e
agradecido, como nós fazemos na nossa linhagem para os nossos monges
fundadores.
Algumas pessoas vomitavam e eu já
tinha ouvido falar sobre isso, eu tinha ficado um pouco preocupada. Uma
das meninas que foi comigo começou a passar mal; até que conseguimos
acalmá-la e colocá-la numa cama ali num cantinho e ela dormiu. Mas me
deu muita impressão de que ela ficou incomodada com o que estava
acontecendo por um profundo desconhecimento. Essa moça sempre passava o
Natal comigo e eu falei 'então vamos juntas', não te largar sozinha na
noite de Natal. E foi um erro, ela não estava preparada. A outra não,
ficou sentadinha ali do meu lado.
Uma hora eu me
senti mal, tive um momento que eu falei 'nossa' e levantei. Eu sou
muito metida, cheguei dizendo 'não eu não vou vomitar, imagina'. Mas
não adianta: tá todo mundo vomitando do seu lado, é muito difícil, né?
Eu vomitei um pouco, não foi muito não. E aí eu fiquei do lado de
fora... e isto foi agradável.
Me perguntaram se
eu não tive visões. Na verdade não, não que eu me lembre. Senti uma
sensação de vastidão e conexão com a natureza, de bem estar com ela e
com todos os seus elementos. Fiquei pensando: porque que nós fazemos
isto numa sala fechada, por que isto não é feito ao ar livre? Porque o
ar e a natureza iam te abrir os braços! Talvez porque fosse frio, né?
Há aqueles que dizem isto não é bom, isto não presta, isto tira do
estado normal de consciência. O que é o estado normal de consciência? O
que seria nossa consciência verdadeira?
Passado
isso eu voltei para a sala. A música continuava, já era mais no final
da noite, estavam em um momento de perguntas. As pessoas pediam licença
e diziam: 'mestra eu posso fazer uma pergunta'. Se ela dissesse sim,
fazia, se ela dissesse não, não fazia. E aí ela vai respondendo. E esta
parte para mim foi mais interessante, porque parece um pouquinho com o
que nós fazemos no templo budista, quando o mestre que tem mais
sabedoria pode conduzir os novatos na vida. Comentei com o pessoa lá
que isso de passar ensinamentos pode ser feito em qualquer religião. O
que eu notei, dentro da minha visão que é um pouco parcial porque eu só
vi um dia, é que a mestra conduziu todo este ensinamento dentro da
visão cristã. A palavra Jesus é usada inúmeras vezes. Era noite de
Natal, eu não sei se é sempre assim.
Na viagem de
volta, a minha amiga que passou mal estava muito bravinha. Ficava no
banco de trás dizendo 'nossa que absurdo, alguém podia morrer numa
cerimônia dessas'. A outra não, estava meio assim sem saber. E pra mim
foi uma coisa muito pé-no-chão.
Até comentei com
o meu superior, que se interessou e ficou de ir. Estava no meu
universo, naquilo que eu conheço. Eu estava ligada, não desligada. Não
sei se isto é assim pra todo mundo, mas me deu uma sensação de estar
muito em mim mesma, e muito capaz de fazer coisas. Foi muito
interessante." |