25/11/2007


Barbara Keifenheim
  Os índios Kaxinawá, cuja práxis alucinógena é o ponto central deste meu estudo, pertencem à família etnolingüística dos índios Pano e vivem na região fronteiriça entre o Peru e o Brasil. Sua população é estimada em aproximadamente 4.600 pessoas (ISA 1996). Em minhas pesquisas de campo, realizadas regularmente desde 1977, concentrei-me exclusivamente nos Kaxinawá do lado peruano. Estes são descendentes de um ramo da etnia, que, no final do auge da exploração da borracha fugiram para a região da nascente do rio Curanja e evitaram qualquer contato com o mundo exterior até final dos anos 1940. Ainda que hoje tenha se completado um processo de assimilação à sociedade peruana, estes Kaxinawá aproveitam seu isolamento geográfico para viver relativamente livres de uma influência externa maciça, em comparação a outros grupos indígenas.
  Ao contrário do que acontece em diversos grupos indígenas amazônicos e em outros grupos Pano, entre os Kaxinawá a utilização de alucinógenos não está associada forçosamente à práxis xamãnica. Para a sua interação com os espíritos, os xamãs Kaxinawá utilizam preferencialmente o tabaco (dume). Somente em casos excepcionais, quando seus métodos não alcançam a cura almejada, é que eles bebem a droga nixe pae em sessões especiais para dialogar com os espíritos. E já que o modelo interpretativo do xamanismo não dá conta do caso Kaxinawá, aqui a questão do sentido e do significado da práxis alucinógena demanda uma outra abordagem. Nos últimos anos, minhas pesquisas evidenciaram que, para alcançar uma compreensão mais profunda deste processo, é imprescindível levar em conta os conceitos indígenas do ver e do visualizar, bem como a integração destes conceitos num complexo universo da percepção. Em outro trabalho, demonstrei detalhadamente como certos conceitos culturais específicos - como o da transformação, da ilusão da realidade externamente perceptível, da existência de múltiplas realidades, da interferência do visível e do invisível, da representação da forma como metamorfose “congelada” etc. - revelam-se como dispositivos igualmente estruturados e estruturantes, que contribuem para a construção das interpretações indígenas específicas das experiências da percepção (Keifenhelm 2000).
  Simultaneamente, comprovei, em nível praxeológico e conceitual, o significado central epistêmico atribuido pelos índios Kaxinawá aos processos de transformação visual, que São Vivenciados em sua plenitude numa experiência sinestésica. Sob a perspectiva dos Caxinawá, as experiências visuais liminares - que em geral podem ser relacionadas tanto a sonhos, delírios febris, comas e alucinações, quanto a certos modos de Contemplação de padrões ornamentais - permitem participar da metamorfose continuamente possível de formas e dimensões. Através deste processo de participação, por meio da auto-experiência sensorial-corporal, manifestam-se os princípios mitológico-cosmológicos coletivos.
  Neste artigo, vou abordar o ritual de droga nixi pae como um dos contextos privilegiados nos quais é rompida a ordem de percepção e de sentido cotidiana. O foco de minha atenção consiste basicamente nas alterações da percepção que ocorrem neste processo. Aqui, o meu interesse não é orientado por questões de caráter nem neurofisiológico, nem sensorial-científico ou perceptual-psicológico. No centro da minha análise encontram-se os discursos indígenas sobre experiências alucinógenas. Em seu fundamento, e a partir da minha observação de muitas sessões de drogas, serão analisados os processos de percepção desde as modalidades sensoriais cotidianas, até a experiência sinestésica.

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