07/10/2007

Para acessar o Índice Geral, clique aqui!

NOTAS COMPLEMENTARES

N. 1 - Sobre a autoridade da Bíblia e as origens do Antigo Testamento

Para a maior parte das igrejas cristãs a Bíblia é a suprema autoridade, sendo os sessenta e seis livros que compõem o Antigo e o Novo Testamento a expressão da "palavra de Deus".

Nós, filhos curiosos do século XX, perguntamos: porque precisamente sessenta e seis livros? Porque nem mais, nem menos?

Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos, entre muitos outros, por desconhecidos rabinos judeus. O valor desses livros é, de resto, muito desigual. O segundo livro dos Macabeus, por exemplo, é muitíssimo superior ao de Ester, o livro da sabedoria excede em valor o Eclesiastes.

O mesmo aconteceu com o Novo Testamento, composto de conformidade com uma norma que os cristãos do primeiro século não conheciam. O Apocalipse foi escrito no ano 68 depois de Jesus-Cristo. O quarto Evangelho só apareceu em fins do século 1 - alguns dizem no ano 140; - um e outro trazem o nome de S. João; mas esses dois livros são animados de um espírito bem diferente. O primeiro é obra de um cristão judeu; o outro é escrito por um cristão da escola filosófica de Alexandria, que não só havia rompido com a dogmática judaica, mas se propunha mesmo combatê-la.

Compreende-se facilmente que os reformadores protestantes, baseando-se no princípio de que a Bíblia constitui a "palavra de Deus" tenham tropeçado em insuperáveis dificuldades. Foram eles sobretudo que emprestaram à Bíblia essa autoridade absoluta que tantos abusos devia ocasionar: é necessário, porém, não os julgar unicamente conforme os resultados da teologia que instituíram. As necessidades do tempo os coagiram a opor à autoridade da Igreja Romana, ao abuso das indulgências, ao culto dos santos, às obras mortas de uma religião em que as frívolas práticas haviam substituído a fé vivificadora, a soberania de Deus e a autoridade da sua palavra, expressa na Bíblia.

Não obstante a disparidade dos elementos que compõem essa obra, não se lhe poderia contestar a alta importância e a inspiração por vezes elevada. Um rápido exame nos provará, todavia, que ela não pode ter a origem que lhe é atribuída.

Gênesis. - Se lermos com atenção os primeiros capítulos do Gênesis verificaremos que encerram duas narrativas distintas da Criação. Os capítulos 1 e II, vv. 1 a 3, contêm uma primeira exposição, mas, no capitulo 11, 4, começa uma outra narração; essas duas narrativas nos revelam o pensamento de dois autores diferentes. Um, falando de Deus, o chama Eloim, isto é, "os deuses". Na opinião de certos comentadores, esse termo designaria as forças, os seres divinos, os Espíritos colaboradores do único. Esse parecer é confirmado por muitas passagens do sagrado livro.

"Eis aí está feito Adão como um de nós", lê-se por exemplo, no Gênesis(131). "Eu sou o Jahveh de vossos deuses", diz o Levitico(132). No livro de Daniel, falando desse profeta, a mulher de Baltazar afirma que ele possui o espírito dos deuses santos (133). Com o plural Eloim, exprimindo a coletividade, o verbo deve ser empregado no singular: os deuses "criou", ao passo que, falando essas forças de si mesmo, o verbo está no plural: "Disse Eloim: Façamos o homem à nossa imagem".

O outro autor do Gênesis emprega o termo Jeová - Jahveh, segundo os modernos orientalistas - nome particular do Deus de Israel. Essa diferença é constante e se encontra em toda a obra, a tal ponto que os exegetas chegaram a distinguir esses dois autores, designando-os pelos nomes de autor Eloísta e autor Jeovista.

Cada um deles tem suas opiniões particulares. O primeiro, por exemplo, se esforçou por dar uma sanção divina à instituição do sábado, alegando que Deus havia, ao sétimo dia, repousado. O segundo explica o problema do sofrimento humano. Provém, diz ele, do pecado, e o pecado decorre da queda de Adão. Terrível encadeamento de conseqüências dogmáticas, que devia pesar aflitivamente sobre o pensamento humano e lhe deter o surto. Renan proclama esse autor o maior dos filósofos. Aí está uma apreciação bem singular. Não se pode, inquestionavelmente, negar que as suas opiniões tivessem inspirado São Paulo, Santo Agostinho, Lutero, Calvino, Pascal; mas em que terríveis dédalos não as emaranharam a razão humana!

No capítulo IV do Gênesis uma estranha contradição se patenteia. Depois de haver morto Abel, Caim se retira para um país distante, no qual encontra homens, casa-se e funda uma cidade. Coisa é essa que gravemente afeta a narrativa da Criação e a teoria da unidade de origem das raças humanas.

Deuteronômio. - Tomemos agora em consideração este quinto livro do Antigo Testamento. Diz o cap. I, v. 1, que é ele obra de Moisés. Nisso há um primeiro exemplo dessas piedosas fraudes que consistiam em publicar um escrito sob o nome de um autor respeitável para lhe dar maior autoridade. Somos informados da origem desse livro pela narrativa dos Reis, II, XXII, vv. 8 e 10. Foi achado no templo, sob o reinado de Josias, um dos últimos reis de Judá, cinco séculos depois de Moisés, numa época em que o astro da dinastia de Judá já se inclinava para o ocaso. O verdadeiro autor o tinha evidentemente colocado no templo, a fim de que fosse descoberto e apresentado ao rei, piedoso homem, que tomou o livro a sério, acreditou que provinha de Moisés e empregou toda a sua autoridade no sentido de aplicar as reformas nele reclamadas. Os judeus achavam-se então engolfados na idolatria; os preceitos do Decálogo de tal modo estavam esquecidos que o autor do Deuteronômio, um reformador bem intencionado, tendo-se proposto recordá-los, provocou um verdadeiro temor nos espíritos e conseguiu fazer aceitar o seu livro como uma nova revelação.

Observemos, a esse respeito, no Deuteronômio, cap. XXVI li, que as sedutoras promessas e as aterradoras ameaças com que se esforça o autor pelo restabelecimento do culto a Jeová se referem exclusivamente à vida terrestre, parecendo não possuir noção alguma da imortalidade.

A mesma coisa se dá com o Pentateuco, conjunto de obras atribuídas a Moisés. Em lugar algum o grande legislador judeu, ou os que falam em seu nome, faz menção da alma como entidade sobrevivente ao corpo. Na sua opinião, a vida do homem, criatura efêmera, se desdobra no acanhado circulo da Terra, sem perspectiva aberta para o céu, sem esperança e sem futuro.

Na maior parte, os outros livros do Antigo Testamento não falam do futuro do homem senão com a mesma dúvida, com o mesmo sentimento de desesperadora tristeza.

Diz Salomão (Eccles.,111, vv. 17 e seguintes):

"Quem sabe se o espírito do homem sobe às alturas? Meditando sobre a condição dos homens, tenho visto que é ela a mesma que a dos animais. Seu fim é o mesmo; o homem perece como o animal; o que resta de um não é mais do que o que resta do outro; tudo é vaidade" (134).

É então isso a "palavra de Deus"? Pode admitir-se que ele tenha deixado ao seu povo predileto ignorar os destinos da alma e a vida futura, quando esse princípio essencial de toda doutrina espiritualista era, havia muito tempo, familiar na índia, no Egito, na Grécia, na Gália?

A Bíblia estabelece como princípio o mais absoluto monoteísmo. Nela não se trata da Trindade. Jahveh reina sozinho no céu, zeloso e solitário. Mas Jahveh primitivamente não é mais que um deus nacional, oposto às divindades cultuadas pelos outros povos. Só mais tarde os hebreus se elevam à concepção desse Poder único, supremo, que rege o Universo. Os anjos não se mostram senão de longe em longe, como mensageiros do Eterno. Não há lugar algum para as almas dos homens nos céus tristes e vazios. No ponto de vista moral, Deus é apresentado na Bíblia sob aspectos múltiplos e contraditórios. Dizem-no o melhor dos pais e fazem-no desapiedado para com os filhos culpados. Atribuem-lhe a onipotência, a infinita bondade, a soberana justiça, e rebaixam-no até ao nível das paixões humanas, mostrando-o terrível, parcial e implacável. Fazem-no criador de tudo o que existe, dão-lhe a presciência, e, depois, apresentam-no como arrependido da sua obra:

Gênesis, cap. VI, vv. 6 e 7: "Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra e teve por isso um grande desgosto em seu coração."

E diz o Eterno: "Eu exterminarei da face da terra os seres que criei, desde os homens até os animais, até tudo o que se roja pelo chão, e até os pássaros dos céus, porque me arrependo de os haver criado."

Só Noé e sua família encontraram graça diante do Eterno. Em que se tornam, depois dessa narrativa, a previdência e o poder divino?

Assinalemos entretanto: a noção da Divindade se vai depurando à medida que evolve o povo. Os profetas, indivíduos inspirados, reprovam, em nome do Senhor, os sacrifícios cruentos, primeiras homenagens dos hebreus a Jahveh; condenam o jejum e os sinais exteriores de humilhação, nos quais o pensamento não tem a menor intervenção.

"Quando me ofereceis os holocaustos de vossas rezes pingues, não me dais prazer algum", exclama o Eterno pela boca de Amós. "O que exijo é que a retidão seja como uma água que transborda, e a justiça como uma torrente impetuosa" (135).

"Não jejuais como convém - escreve Isaias, - Curvar a cabeça como um junco e fazer cama de saco e de cinza, chamaras tu a isso o jejum agradável ao Senhor? Mas o jejum que me agrada é antes este: Rompe as ligaduras da maldade; desata os laços da servidão, deixa ir livres os oprimidos; reparte o teu pão com o que tem fome e introduze em tua casa os infelizes e os peregrinos; dá de vestir aos nus e não desprezes os teus semelhantes, e então romperá como a aurora tua luz, a justiça irá diante de tua face e a glória do Eterno te acompanhará(137)

"0 que o Senhor requer de ti - diz Miqueias - é que pratiques a justiça, que ames a misericórdia e que andes humildemente com o teu Deus"137.

Em sua obra intitulada Em torno de um livrinho, respondendo às criticas suscitadas pelo seu trabalho sobre O Evangelho e a Igreja, externa o abade Loisy a opinião de que, em seu conjunto, não têm os livros do Antigo Testamento outro objetivo além da instrução religiosa e edificação moral do povo. "Nele se desconhece a exatidão bibliográfica - acrescenta; - a preocupação do fato material e da história objetiva brilha pela ausência."

É também essa a minha opinião. Daí segue que não poderia a Bíblia ser considerada "a palavra de Deus" nem uma revelação sobrenatural. O que se deve nela ver é uma compilação de narrativas históricas ou legendárias, de ensinamentos sublimes, de par com pormenores às vezes triviais.

Parece, em certos casos, se inspirarem os autores do Pentateuco em revelações mais antigas, como o faz notar Swedenborg, com provas em apoio. Os iniciados encaram o Antigo Testamento como puramente simbólico e nele pensam descobrir todas as verdades por meio da Cabala. Somos também de opinião que o pode revestir a forma de um símbolo. Do mesmo modo que aí vemos a preparação do povo hebreu para o advento do Cristianismo, sob a direção de Moisés e dos profetas, aos quais se mostra ele às vezes tão rebelde, pode igualmente esse livro representar-nos a marcha ascensional do espírito humano para a perfeição, a que o conduzem os Espíritos superiores de um e do outro mundo.

O Antigo Testamento parece destinado a servir de laço entre a raça semítica e a ariana. Jesus, com efeito, não parece mais ariano que judeu? Sua infinita mansidão, a serena claridade de seu pensamento não estão em oposição com os rígidos, com os sombrios aspectos do Judaísmo?

Essa obra não remonta a tão antiga data como se tem de bom grado feito crer. Foi em todo caso retocada mais ou menos tempo depois da volta da Babilônia, porque nela a espaços se encontram alusões ao cativeiro dos judeus nesse país(138). É bem a obra dos homens, o testemunho da sua fé, das suas aspirações, do seu saber, e também dos seus erros e superstições. Os profetas nela consignaram a palavra vibrante que lhes era inspirada; videntes, descreveram as imagens das realidades invisíveis que lhes apareciam; escritores, delinearam as cenas da vida social e os costumes da época.

Foi com o intuito de dar a esses ensinos tão diversos maior peso e autoridade, que foram eles apresentados como emanados da soberana potência que rege os mundos.

N. 2 - Sobre a origem dos Evangelhos

O Antigo Testamento é o livro sagrado de um povo - o povo hebreu; o Evangelho é o livro sagrado da Humanidade. As verdades essenciais que ele contém acham-se ligadas às tradições de todos os povos e de todas as idades.

A essas verdades, porém, muitos elementos inferiores vieram associar-se.

Nesse ponto de vista o Evangelho pode ser comparado a um vaso precioso em que, no meio da poeira e das cinzas, se encontram pérolas e diamantes. A reunião dessas gemas constitui a pura doutrina cristã.

Quanto à sua verdadeira origem, admitindo que os Evangelhos canônicos sejam obra dos autores de que trazem os nomes, é preciso notar que dois dentre eles, Marcos e Lucas, se limitaram a transcrever o que lhes fora dito pelos discípulos. Os outros dois, Mateus e João, conviveram com Jesus e recolheram os seus ensinos. Os seus evangelhos, porém, não foram escritos senão quarenta e sessenta anos depois da morte do mestre.

A seguinte passagem de Mateus (XXIII, 35) - a menos que se trate de uma interpolação bem verossímil - prova que essa obra é posterior à tomada de Jerusalém (ano 70). Jesus dirige esta veemente apóstrofe aos fariseus: "Para que venha sobre vóstodo o sangue inocente que se tem derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel "até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vós matastes entre o templo e o altar".

Ora, segundo todos os historiadores e, em particular, segundo Flávius Josefo (139), esse assassínio foi praticado no ano 67, ou sejam trinta e quatro anos depois da morte de Jesus.

Se atribuem ao Cristo a menção de um fato que ele não pudera conhecer, ao que se não terão animado acerca de outros pontos?!

Os Evangelhos não estão concordes sobre os fatos mais notáveis atribuídos a Jesus. Assim, cada um deles refere de modo diferente as suas derradeiras palavras. Segundo Mateus c Marcos, teriam sido: "Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?"(140) Conforme Lucas, o Cristo, ao expirar, teria dito: "Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito(141) expressivo testemunho do amor filial que o unia a Deus. João, finalmente, põe na sua boca estas palavras: `Tudo está cumprido.(142)

O mesmo se verifica relativamente à primeira aparição de Jesus: ainda nisso os evangelistas não estão de acordo. Mateus fala de duas mulheres que, juntas, o teriam visto. No dizer de Lucas, foi aos dois discípulos que se dirigiam para Emaús que em primeiro lugar o Cristo se mostrou. Marcos e João assinalam unicamente Maria Madalena como testemunha de sua primeira aparição (143).

Notemos ainda uma divergência acerca da Ascensão: Mateus e João, os únicos companheiros de Jesus que escreveram sobre a sua vida, dela não falam. Marcos a indica em Jerusalém (XVI, 14,19), e Lucas declara que ela teve lugar na Betânia (XXIV, 50, 51), no próprio dia da ressurreição, ao passo que os Atos dos Apóstolos dizem ter sido quarenta dias depois (Atos, 1, 3).

Por outro lado, é evidente que o último capítulo do evangelho de João não é do mesmo autor do resto da obra.

Este terminava primitivamente no versículo 31 do cap. XX, e o primeiro versículo que se lhe segue indica um acréscimo.

João teria ousado dizer-se "o discípulo que Jesus amava?" Teria ele podido pretender que no mundo inteiro não caberiam os livros em que se descrevessem os fatos e os gestos de Jesus? (XXI, 25). Se reconhecemos que foi acrescentado um capítulo inteiro a esse evangelho, seremos levados a concluir que numerosas interpolações poderiam ter sido feitas igualmente.

Falamos do grande número de Evangelhos apócrifos. Deles contava Fabrício trinta e cinco. Esses evangelhos, hoje desprezados, não eram, entretanto, destituídos de valor aos olhos da Igreja, pois que num deles diz Nicodemos que ela vai buscar a crença na descida de Jesus aos infernos, crença imposta a toda a cristandade pelo símbolo do concílio de Nicéia, e de que não fala nenhum dos Evangelhos canônicos.

Em resumo, segundo A. Sabatier, decano da Faculdade de Teologia Protestante de Paris (144), os manuscritos originais dos Evangelhos desapareceram, sem deixar nenhum vestígio certo na História. Foram provavelmente destruídos por ocasião da proscrição geral dos livros cristãos, ordenada pelo imperador Diocleciano (edito imperial de 303). Os escritos sagrados que escaparam à destruição não são, por conseguinte, senão cópias.

Primitivamente, não tinham pontuação esses escritos, mas, em tempo, foram divididos em perícopes, para comodidade da leitura em público - divisões às vezes arbitrárias e diferentes entre si. A divisão atual apareceu pela primeira vez na edição de 1551.

Apesar de todos os seus esforços, o que a crítica pôde cientificamente estabelecer de mais antigo foram os textos dos séculos V e IV. Não pôde remontar mais longe senão por conjeturas sempre sujeitas à discussão.

Orígenes já se queixava amargamente do estado dos manuscritos no seu tempo. Irineu refere que populações inteiras acreditavam em Jesus sem a intervenção do papel e da tinta. Não se escreveu imediatamente, porque era esperada a volta do Cristo.

N. 3 - Sobre a autenticidade dos Evangelhos

Um atento exame dos textos demonstra que, em meio das discussões e das perturbações que agitaram, nos primeiros séculos, o mundo cristão, não se hesitou, para aduzir argumentos. em desvirtuar os fatos, em falsear o verdadeiro sentido do Evangelho. Celso, desde o século II, no Discurso verdadeiro, lançava aos cristãos a acusação de retocarem constantemente os Evangelhos e eliminarem no dia seguinte o que havia sido inserido na véspera.

Muitos fatos parecem imaginários e acrescentados posteriormente. Tais, por exemplo, o nascimento em Belém, de Jesus de Nazaré, a degolação dos inocentes, de que a História não faz menção alguma, a fuga para o Egito, a dupla genealogia, contraditória em tantos pontos, de Lucas e Mateus.

Como, também, acreditar na tentação de Jesus, que a Igreja admite nesse mesmo livro em que acredita encontrar as provas da sua divindade? Satanás leva Jesus ao monte e lhe oferece o império do mundo, se ele lhe quiser prestar obediência. Se Jesus é Deus, poderia Satanás ignorá-lo? E, se conhecia sua natureza divina, como esperava exercer influência sobre ele?

A ressurreição de Lázaro, o maior dos milagres de Jesus, é unicamente mencionada no quarto Evangelho, mais de 60 anos depois da morte do Cristo, ao passo que as suas menores curas são citadas nos três primeiros.

Com o quarto Evangelho e Justino Mártir, a crença cristã efetua a evolução que consiste em substituir à idéia de um homem honrado, tornado divino, a de um ser divino que se tornou homem.

Depois da proclamação da divindade do Cristo, no século IV, depois da introdução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século VII, muitas passagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que exprimissem as novas doutrinas (Verjoão, I, 5,7). "Vimos, diz Leblois(145), na Biblioteca Nacional, na de Santa Genoveva, na do mosteiro de Sannt-Gall, manuscritos em que o dogma da Trindade está apenas acrescentado à margem. Mais tarde foi intercalado no texto, onde se encontra ainda."

N. 4 - Sobre o sentido oculto dos Evangelhos

Muitos dentre os padres da Igreja afirmam que os Evangelhos encerram um sentido oculto.

Orígenes diz:

"As Escrituras são de pouca utilidade para os que as tomem como foram escritas. A origem de muitos desacertos reside no fato de se apegarem à sua parte carnal e exterior."

"Procuremos, pois, o espírito e os frutos substanciais da Palavra que são ocultos e misteriosos."

0 mesmo diz ainda:

"Há coisas que são referidas como histórias, que nunca se passaram e que eram impossíveis como fatos materiais, e outras que eram possíveis, mas que não se passaram."

Tertuliano e Denis, o Areopagita, falam também de um esoterismo cristão.

Santo Hilário declara repetidas vezes que é necessário, para inteligência dos Evangelhos, supor-lhes um sentido oculto, uma interpretação espiritua (146).

No mesmo sentido se externa Santo Agostinho:

"Nas obras e nos milagres de Nosso Salvador há ocultado mistérios que se não podem levianamente, e segundo a letra, interpretar sem cair em erro e incorrer em graves faltas."

São Jerônimo, em sua Epístola a Paulino, declara com insistência:

"Toma cuidado, meu irmão, no rumo que seguires na Escritura Santa. Tudo o que lemos na Palavra santa é luminoso e por isso irradia exteriormente, mas a parte interior ainda é mais doce. Aquele que deseja comer o miolo deve quebrar a casca."

Sobre esse mesmo assunto, animada controvérsia teológica se travou entre Bossuet e Fenelon. Afirmava este haver um sentido secreto das Escrituras, transmitido unicamente a iniciados, uma gnose católica vedada às pessoas vulgares(147).

De todas essas ocultas significações a primitiva Igreja possuía o sentido, mas dissimulava-o cuidadosamente; pouco a pouco veio ele a se perder.

N. 5 - Sobre a Reencarnação

Em suas obras faz o historiador judaico Josefo profissão de sua fé na reencarnação; refere ele que era essa a crença dos fariseus. O padre Didon o confirma nestes termos, em sua Vida de Jesus: "Entre o povo judeu e mesmo nas escolas acreditava-se na volta da alma dos mortos na pessoa dos vivos".

E o que explica, em muitos casos, as perguntas feitas a Jesus por seus discípulos.

A propósito do cego de nascença, o Cristo respondeu a uma dessas interrogações:

"Não é que ele tenha pecado, nem seus pais, mas é para que nele se manifestem as obras de Deus."

Os discípulos acreditavam que se podia ter pecado antes de nascer, isto é, numa existência anterior. Jesus compartilha da crença deles, pois que, vindo para ensinar a verdade, não teria deixado de retificar essa opinião, se errônea fosse. Ao contrário, a ela responde, explicando o caso que os preocupa.

O sábio beneditino Dom Calmet se exprime do seguinte modo em seu Comentário sobre essa passagem das Escrituras:

"Muitos doutores judeus acreditam que as almas de Adão, de Abraão, Fineias, animaram sucessivamente vários homens da sua nação. Não é, pois, de modo algum para estranhar que os apóstolos tenham raciocinado como parece raciocinarem aqui sobre a enfermidade desse cego, e que tenham acreditado que fora ele próprio quem, por algum pecado oculto, cometido antes de nascer, tivesse atraído sobre si mesmo semelhante desgraça."

A respeito da conversação de Jesus com Nicodemus, um pastor da igreja holandesa nos escreve nestes termos:

"É claro que a reencarnação é o verdadeiro nascimento em uma vida melhor. É um ato voluntário do Espírito, e não o exclusivo resultado do contacto carnal dos pais; decorre da dupla resolução da alma de tomar um corpo material e tornar-se um homem melhor."

"Repare-se como S. João (I, 13) nega abertamente a intervenção dos pais no nascimento da alma, quando diz: Que não são nascidos do sangue, nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus."

"Todos esses pontos obscuros se iluminam de uma viva claridade, quando os consideramos no ponto de vista espírita."

Na conversação de Jesus e Nicodemus, este, ouvindo o Cristo falar de renascimento, não compreende como possa ele ter lugar. Diante dessa estreiteza de espírito, Jesus fica perplexo.

Não lhe é possível dar ao seu pensamento a extensão e o arrojo próprios. Para ele a reencarnação representa o primeiro elo de uma série de mais transcendentes verdades. Era já conhecida dos homens desse tempo. E eis que um doutor em Israel nada percebe a tal respeito! Daí a apóstrofe de Jesus: Como! Se não compreendeis as coisas terrestres, poderei eu explicar-vos as coisas celestes, as que se referem particularmente à minha missão!

De todos os padres da Igreja, foi Orígenes quem afirmou, do modo mais positivo, em numerosas passagens dos seus Princípios (livro 1-), a reencarnação ou renascimento das almas. É esta a sua tese: "A justiça do Criador deve patentear-se em todas as coisas." Eis em que termos o abade Bérault-Bercastel resume a sua opinião:

"Segundo este doutor da Igreja, a desigualdade das criaturas humanas não representa senão o efeito do seu próprio merecimento, porque todas as almas foram criadas simples, livres, ingênuas e inocentes por sua própria ignorância, e todas, também por isso, absolutamente iguais. O maior número incorreu em pecado e, na conformidade de suas faltas, foram elas encerradas em corpos mais ou menos grosseiros, expressamente criados para lhes servir de prisão. Daí os procedimentos diversos da família humana. Por mais grave, porém, que seja a queda, jamais acarreta para o Espírito culpado a retrocessão à condição de bruto; apenas o obriga a recomeçar novas existências, quer neste, quer em outros mundos, até que, exausto de sofrer, se submeta à lei do progresso e se modifique para melhor. Todos os Espíritos estão sujeitos a passar do bem ao mal e do mal ao bem. Os sofrimentos impostos pelo Bom Deus são apenas medicinais, e "os próprios demônios cessarão um dia de ser os inimigos do bem e o objeto dos rigores do Eterno." (História da Igreja, pelo abade Bérault-Bercastel.)

Lemos na Apologética de Tertuliano:

"Declare um cristão acreditar possível que um homem renasça noutro homem, e o povo reclamará em grandes brados que seja lapidado. Entretanto, se foi possível crer-se na metempsicose grosseira, a qual afirmava que as almas humanas voltam em diversos corpos de animais, não será mais digno admitir-se que um homem possa ter sido anteriormente um homem, conservando sua alma as qualidades e faculdades precedentes?"

S. Jerônimo por sua vez afirma que a transmigração das almas fazia parte dos ensinos revelados a um certo número de iniciados.

Em suas Confissões (148) diz Santo Agostinho:

"Não teria minha infância atual sucedido a uma outra idade antes dela extinta?... Antes mesmo desse tempo, teria eu estado em algum lugar? Seria alguém?"

Firmando este princípio moral: "Conforme a justiça divina, aqui neste mundo não pode existir um desgraçado que não haja merecido o seu infortúnio", esse padre da Igreja faz pressentir a razão dos sofrimentos das crianças, a causa geral das provações que padece a Humanidade, assim como a das deformidades nativas. A preexistência das almas à dos corpos em uma ou várias existências anteriores à vida terrestre explica essas aparentes anomalias, de tal sorte, repitamos, que os sofrimentos, segundo Orígenes - que adotara a tal respeito à opinião de Platão - seriam curativos da alma, correspondendo à necessidade simultânea da justiça e do amor, não nos sendo imposto o sofrimento senão para nos melhorarmos.

N. 6 - Sobre as relações dos primeiros cristãos com os Espíritos

Na linguagem filosófica da Grécia, a palavra demônio (daimon) era sinônimo de gênio ou de Espírito. Tal, por exemplo, o demônio de Sócrates. Fazia-se distinção entre os bons e os maus demônios. Platão dá mesmo a Deus o nome de demônio onipotente. 0 Cristianismo adotou em parte esses termos, mas modificou-lhes o sentido(149). Aos bons demônios deu ele o nome de anjos, e os maus se tornaram os demônios, sem adjetivação. A palavra espírito (pneuma) ficou sendo a expressão usada para designar uma inteligência privada de corpo carnal.

Essa palavra pneuma, traduziu-a S. Jerônimo como spiritus, reconhecendo, com os evangelistas, que há bons e maus Espíritos. A idéia de divinizar o Espírito não surgiu senão no século II. Foi somente depois da Vulgata que a palavra sanctus foi constantemente ligada à palavra spiritus, não conseguindo essa junção, na maioria dos casos, senão tornar o sentido mais obscuro e mesmo, às vezes, ininteligível. Os tradutores franceses dos livros canônicos foram ainda mais longe a esse respeito e contribuíram para desnaturar o sentido primitivo. Eis aqui um exemplo, entre outros muitos: lê-se em Lucas (cap. XI, texto grego)

10 -"Aquele que pede, recebe; o que procura acha; ao que bate se abrirá." - 13. "Portanto, se bem que sejais maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, com muito mais forte razão vosso Pai enviará do céu "um bom espírito" àqueles que lho pedirem."

As traduções francesas trazem o Espírito Santo. É um contra-senso. Na Vulgata, tradução latina do grego, está escrito Spiritum bonum, palavra por palavra, espírito bom. A Vulgata não fala absolutamente do Espírito Santo. O primitivo texto grego ainda é mais frisante, e nem douto modo poderia ser, pois que o Espírito Santo, como terceira pessoa da Trindade, não foi imaginado senão no fim do século II.

Convém todavia, notar que a Bíblia, em certos casos, fala do Espírito Santo, mas sempre no sentido de Espírito familiar, de Espírito ligado a uma pessoa. Assim, no Antigo Testamento (Daniel, XIII, 45)(150) se lê: "o senhor suscitou o espírito santo de um moço chamado Daniel".

Relativamente ao comércio dos primeiros cristãos com os Espíritos, as seguintes passagens das Escrituras nos devem chamar particularmente a atenção:

Atos, XXI, 4:

"E disseram eles a Paulo, "sob a influência do espírito", que não subisse para Jerusalém."

Certas traduções francesas rezam Espírito Santo.

I Cor. XIV, 30, 31. Trata-se da ordem a estabelecer nas reuniões dos fiéis:

"Desde que um dos que estão sentados (no templo) recebe uma revelação, cale-se o que primeiro falava. Porque todos podeis profetizar, um depois do outro, a fim de que todos aprendam e sejam todos exortados."

Dessa instrução ressalta que profetizar não era outra coisa senão transmitir um ensino; é ainda a função do médium falante ou de incorporações.

Atos, XXIII, 6-9. Paulo, dirigindo-se a uma assembléia, dizia:

"É por causa da esperança de uma outra vida e da ressurreição dos mortos que me querem condenar..."

Produziu-se um grande ruído, e alguns dos fariseus contestavam, dizendo: "Nenhum mal encontramos neste homem. Quem sabe se lhe falou algum espírito ou anjo?"

Atos XVI, 16, 17. Paulo fora avisado em sonho de que passasse por Macedônia, com Timóteo:

"Encontram eles uma serva moça que, tendo um espírito de Piton, auferia, em benefício de seus amos, grandes lucros, adivinhando. Ela se pôs a segui-los durante muitos dias, clamando: Esses homens são servos do Altíssimo, que nos anunciam o caminho da salvação."

A expressão "espírito de Piton" designava, na linguagem daquele tempo, um mau Espírito. Era empregada pelos judeus ortodoxos, que só admitiam o profetismo oficial, reconhecido pela autoridade sacerdotal, desde que os seus ensinos eram conformes com os deles; pelo contrário, condenavam o profetismo popular, praticado sobretudo por mulheres, que dele tiravam partido, como em nossos dias ainda o fazem alguns médiuns mercenários. Essa qualificação, porém, de "espírito de Píton" era muitas vezes arbitrária. Disso vamos encontrar a prova no fato de a vidente ou "pitoniza" de Éndor, que serviu de intermediária a Saul para comunicar com o Espírito de Samuel, possuir também, segundo a expressão bíblica, um "espírito de Piton". Entretanto, não é possível confundir o Espírito do profeta Samuel com Espíritos de ordem inferior. A cena descrita pela Bíblia é de uma imponência grandiosa; oferece todos os caracteres de uma elevada manifestação(151).

No caso da jovem serva, citado acima a propósito de Paulo, a admitir-se que os maus Espíritos podiam pregar o Evangelho, acompanhando os apóstolos, difícil se tornaria distinguir a fonte das inspirações. Era o que fazia objeto de atenção especial em todas as circunstâncias, nas assembléias dos fiéis. Disso encontramos a afirmação num documento célebre, cuja análise damos a seguir:

A Didaque, pequeno tratado descoberto em 1873, na biblioteca do patriarcado de Jerusalém, em Constantinopla, composto provavelmente no Egito, entre os anos 120 e 160, projeta uma nova luz sobre a organização da igreja cristã no começo do século II, sobre o seu culto e a sua fé. Compreende várias partes: a primeira, essencialmente moral, abrange seis capítulos destinados a instruções dos catecúmenos. O que sobretudo é digno de nota nesse catecismo é a completa ausência de todo elemento dogmático. A segunda parte trata do culto, isto é, do batismo, da prece e da comunhão; a terceira contém uma liturgia e uma disciplina. Recomenda a observância do domingo; estabelece regras para discernir dos falsos os verdadeiros profetas (leia-se médiuns); assinala as condições requeridas para ser bispo ou diácono, e termina com um capítulo sobre as coisas finais e a Parusia ou volta do Cristo.

Essa obra apresenta um quadro da igreja primitiva, muito diferente do que comumente se imagina (152). Os cristãos desse tempo conheciam perfeitamente as práticas necessárias para se entrar em comunicação com os Espíritos, e não perdiam ocasião de a cultivar. Aqui estão dois exemplos positivamente notáveis:

O papa São Leão havia escrito a Flaviano, bispo de Constantinopla, uma carta célebre sobre a heresia de Eutíquio e de Nestório. Antes, porém, de a expedir, colocou-a no túmulo de S. Pedro, que fizera previamente abrir e ao pé do qual se conservou em jejum e oração durante quatro dias, conjurando o príncipe dos apóstolos a corrigir pessoalmente o que à sua fraqueza e prudência tivesse escapado em contrário à fé e aos interesses de sua Igreja. Ao fim dos quatros dias lhe apareceu o príncipe dos apóstolos e lhe disse: "Li e corrigi". O papa fez de novo abrir o túmulo e encontrou o escrito efetivamente corrigido (153).

Aqui está, porém, melhor ainda. Segundo refere Gregório de Cesaréia (154) e depois dele Nicéforo(155), todo um concílio teria evocado os Espíritos:

"Ao tempo em que o concílio ainda efetuava suas sessões, e antes que os Padres tivessem podido assinar as decisões, dois piedosos bispos, Crisântus e Misônius, faleceram. O concílio, depois de haver lavrado o termo, lastimando vivamente não ter podido juntar seu voto aos de todos os outros, compareceu incorporado ao túmulo dos dois bispos e um dos padres, tomando a palavra, disse: "Santíssimos pastores, terminamos juntos nossa tarefa e combatemos os combates do Senhor. Se a obra lhe agrada, dignai-vos no-lo fazer saber, apondo-lhe vossa assinatura."

Em seguida foi à decisão lacrada e deposta no túmulo, sobre o qual foi também aposto o selo do concilio. Depois de terem passado toda à noite em oração, no dia seguinte, ao amanhecer, quebraram os mesmos selos e encontraram, por baixo do manuscrito, as seguintes linhas autenticadas com as rubricas e assinaturas dos defuntos consultados: "Nós, Crisântus e Misônius, que havemos assentido, com todos os Padres, ao primeiro e santo Concílio Ecumênico, posto que presentemente despojados de nossos corpos, subscrevemos, entretanto, do nosso próprio punho a sua decisão." A Igreja - acrescenta Nicéforo - considerou essa manifestação como um notável e positivo triunfo sobre seus inimigos"156.

Aí estão dois fatos de escrita direta, fenômeno comprovado também atualmente (157).

Do mesmo modo que os fariseus acusavam certos profetas de serem animados do "espírito de Píton", assim também, entre, os padres católicos dos nossos dias, muitos atribuem as manifestações espíritas aos demônios ou espíritos infernais: "São os demônios, diz o arcebispo de Tolosa, em sua pastoral, pela quaresma de 1875, pois que não é permitido consultar os mortos. Deus lhes recusa a faculdade de satisfazer as nossas vãs curiosidades."

Ele não recusou, entretanto, a Samuel, no caso antes aludido, que satisfizesse a curiosidade de Saul em Êndor.

Mas nem todos os padres católicos são dessa opinião. No seio do clero, muitos espíritos argutos têm compreendido a importância das manifestações espíritas e o seu verdadeiro caráter.

Escrevia à Sra. Svetchine, em 20 de junho de 1853, o padre Lacordaire, a propósito das mesas giratórias:

"Também, mediante essa divulgação, Deus quer talvez proporcionar o desenvolvimento das forças espirituais ao desenvolvimento das forças materiais, a fim de que o homem não esqueça, ante as maravilhas da mecânica, que há dois mundos contidos um no outro, o mundo dos corpos e o mundo dos Espíritos."

0 Padre P Le Blun, do Oratório, em sua obra intitulada História das Práticas Supersticiosas, tomo VI, página 358, se exprime deste modo

"As almas que desfrutam a bem-aventurança eterna, abismadas na contemplação da glória de Deus, não deixam de se interessar ainda pelo que respeita aos homens, cujas misérias suportaram, e, como chegamos à felicidade dos anjos, "todos os escritores sacros lhes atribuem o privilégio de poder, sob corpos etéreos, tornar-se visível aos seus irmãos que ainda se acham na Terra, para os consolar e lhes transmitir as divinas vontades."

Escrevia o abade Marouzeau a Allan Kardec:

"Mostrai ao homem que ele é imortal. Nada vos pode melhor secundar nessa nobre tarefa do que a comprovação dos Espíritos de além-túmulo e suas manifestações. Só com isso vireis em auxílio da Religião, empenhando ao seu lado os combates de Deus."

0 abade Leçanu, em sua História de Satanás, aprecia nestes termos o alcance moral do Espiritismo:

"Observando-se as máximas de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, faz-se o bastante para se tornar santo na Terra."

Em suas Cartas à Srta. Th. V., escreve o padre Didon estas palavras, a respeito de uma pessoa recentemente falecida: "...eu, que acredito na ação constante dos Espíritos e dos mortos sobre nós, creio bem que esse desaparecido vos guarda e assiste invisivelmente(158).

E noutro lugar lemos ainda:

"Creio na influência divina que sobre nós misteriosamente exercem os mortos e os santos. Vivo em profunda comunhão com esses invisíveis e é delicioso para mim experimentar os benefícios de sua secreta aproximação(159)

0 Dr. José Lappôni, médico de dois papas - Leão XIII e Pio X - relata em sua obra Hipnotismo e Espiritismo numerosos fenômenos espíritas, cuja autenticidade admite.

Assim, de um lado, na Igreja Católica, condenam o Espiritismo como contrário às leis de Deus e da Igreja, e do outro o consideram como um auxiliar da Religião e o qualificam de "combate de Deus". Diante de tais contradições, grande deve ser a perplexidade dos crentes.

0 mesmo acontece no seio das igrejas protestantes. Muitos pastores, e não dos menos eminentes, vão-se chegando sem rodeio ao Espiritismo. O pastor Benezech, de Montauban, nos escrevia, em fevereiro de 1905, a respeito de fenômenos por ele mesmo observados:

"Prevejo que o Espiritismo bem pode vir a tornar-se uma religião positiva, não à maneira das religiões reveladas, mas com o caráter de religião estabelecida sobre fatos de experiência e plenamente de acordo com a Ciência e o racionalismo. Estranha coisa! - em nossa época de materialismo, em que as igrejas parecem na iminência de se desorganizar e dissolver-se, o pensamento religioso nos é restituído por sábios, acompanhado pelo maravilhoso dos antigos tempos. Esse maravilhoso, porém, que eu distingo do milagre, pois que não é mais que um natural superior e raro, já não estará ao serviço de uma igreja particularmente distinguida com os favores da divindade; será a propriedade da Humanidade, sem distinção de cultos. Como isso é mais grandioso e também moral!"

Em Londres, o reverendo Hawis pregava recentemente a "doutrina dos mortos", na igreja de Marylebone, e convidava os seus ouvintes a passar pela sacristia depois do sermão, para examinar fotografias de Espíritos. Mais recentemente ainda, na igreja de S. Jaques, o mesmo orador pregava sobre "as tendências do moderno espiritualismo", e concluía dizendo que "os fatos espíritas oferecem perfeita concordância com o mecanismo geral e as teorias da religião cristã". (Traduzido da revista Light, de Londres, 7 de agosto 1897)

Um certo número de pastores americanos entrou nessa ordem de idéias.

As Neue spiritualistische Blatter, de 16 de março 1893, publicam a tradução de um artigo do Sr. Savage, pastor da Igreja Unitária de Boston, no qual esse pensador, esse emérito escritor, bem conhecido nos Estados Unidos, narra as suas investigações no domínio psíquico e conta de que modo foi levado a acreditar nos fatos espíritas.

Reproduzimos em seguida esse artigo:

A respeito dessas questões, eu me encontrava como outrora os homens sisudos de Jerusalém, de Corinto e de Roma, relativamente ao Cristianismo: parecia-me que era uma pestífera superstição. Uma vez, fundado na minha invencível ignorância, pronunciei contra essas idéias um discurso em quatro lugares, depois do qual muito me admirei de que ainda houvesse, entre as pessoas de meu conhecimento, indivíduos que continuassem a acreditar nisso do mesmo modo.

"Há dezessete anos, um membro da minha igreja perdeu o pai. Pouco tempo depois veio ele confiar-me que, tendo ido, com um amigo, procurar um médium, este lhe disse certas coisas convincentes, e pediu-me que lhe desse um conselho. Reconheci então que me não competia dá-lo acerca de uma coisa que eu não conhecia e da qual toda a minha ciência consistia em preconceitos. A rápida propagação do Espiritismo, nas classes ilustradas de Boston, me fez compreender que era necessário submeter a sério exame os fenômenos em questão, porquanto era possível, ou antes provável que ainda outros membros da minha igreja me pedissem explicações sobre isso.

"Disse, pois, comigo mesmo: quer sejam falsas, quer verdadeiras, é preciso, em todo caso, que eu estude a fundo essas coisas, para ser bom conselheiro. Reconheci que seria uma vergonha para mim não ter opinião alguma sobre as referências do Antigo e do Novo Testamento às aparições e às influências demoníacas. Por que motivo ser inflexível na minha ignorância a respeito de coisas que tinham uma certa importância para os membros da minha igreja? Convenci-me de que era meu dever estudar conscienciosamente esses fenômenos, até formar uma opinião inteligente quanto ao valor deles. Tais foram os principais motivos que me conduziram a estas longas investigações.

"Nelas observei o método científico, único que, a meu ver, conduz ao conhecimento. Mediante uma observação minuciosa, procurei sempre certificar-me de me haver ou não com um fato real e não prestei atenção a nenhuma das manifestações que se produzem às escuras, ou em condições em que eu não podia estar seguro da minha pesquisa

"Sem pretender que as manifestações obtidas em semelhantes condições sejam forçosamente devidas à fraude, não lhes atribuí valor algum; além disso, posto que reconhecesse muito bem que uma coisa reproduzida em outras condições não é uma simples imitação, aprendi a fundo a arte dos escamoteadores, que se me tornou assaz familiar. Na sua maior parte, as manifestações que fui obrigado a reconhecer como reais e que produziram o resultado de me convencer, tiveram lugar em presença de alguns amigos de confiança e sem o concurso de médium de profissão.

"Uma vez, certo de que tinha de haver-me com um fato, lancei mão de todas as teorias possíveis para o explicar, sem recorrer à dos Espíritos. Eu não digo "sem recorrer a uma explicação sobrenatural": digo "sem recorrer à teoria dos Espíritos", porque não acredito em nada sobrenatural. Se há Espíritos, a nossa incapacidade de os ver não os torna mais sobrenaturais do que o átomo, para a Ciência, o qual do mesmo modo não vemos.

"Ora, eu descobri fatos que provam que o eu não morre e que, depois do que chamamos morte, ainda é capaz, em certas condições, de entrar em comunicação conosco".

"0 reverendo J. Page Hopps, numa reunião de pastores, em Manchester, afirmava "a comunhão dos Espíritos no visível e no invisível" e propunha a fundação de uma igreja, cujas prédicas seriam "as mensagens lá do alto".

(AURORE, JULHO DE 1893)

Em um artigo do Pontefract Express de 20 de janeiro de 1898, o reverendo C. Ware, ministro da Igreja Metodista, fala muito longamente dos Atos dos Apóstolos. Exorta ele os cristãos "a fazer um estudo aprofundado desse livro, no ponto de vista dos inúmeros e maravilhosos fatos que ele relata e que outra coisa não são senão fenômenos espíritas. É preciso notar que, no começo do estabelecimento do Cristianismo, duas classes de cooperadores se acham constantemente em contacto: os Espíritos desencarnados e os encarnados." 0 reverendo Ware menciona os fenômenos extraordinários que acompanharam a prédica dos discípulos depois que sobre suas cabeças se derramaram as línguas de fogo, e o ardente fervor comunicado aos primeiros cristãos por esses fenômenos todos, os quais se reproduzem atualmente nas sessões espíritas.

0 pastor holandês Beversluis pronunciava estas palavras, no Congresso Espírita realizado, em 1900, em Paris:

“Adquiri a certeza de que o Espiritismo é real... Essa luz celeste faz dissipar-se o medo do inferno, de Satanás e desse Deus terrível do calvinismo, que odeia as suas criaturas e as condena a eterna punição. Em lugar desse terror, o Espiritismo faz nascer uma confiança de filho e uma dedicação enternecida ao Deus de amor”.

" Finalmente, o venerável arcediago Colley, numa carta publicada no Daily Mail de 1- de fevereiro 1906, assim se exprime:

"Sou espírita há mais de trinta e três anos e posso dizer que jamais, ou só muito raramente, vi que o Espiritismo outra coisa produzisse a não ser o bem, mostrando ser um estimulo para a elevação moral e intelectual de quem o professa, para o aperfeiçoamento humano, um alívio na desgraça, um motivo de satisfação na existência... 0 Espiritismo é, além disso, um meio de cura para a falta de fé, sobretudo porque fornece uma prova científica da continuação da vida além do túmulo."

E prossegue dizendo que, em sua opinião, o Espiritismo é como o coroamento de tudo o que de mais precioso há em cada religião (160).

N. 7 - Os fenômenos espíritas na Bíblia

Muito se tem insistido sobre as proibições de Moisés, contidas no Êxodo, no Levítico e no Deuteronômio. É inspirados em tais proibições que certos teólogos condenam o estudo e a prática dos fatos espíritas. Mas o que Moisés condena são os mágicos, os adivinhos, os augures, numa palavra, tudo o que constitui a magia, e é o que o próprio espiritualismo moderno também condena. Essas práticas corrompiam a consciência do povo e lhe paralisavam a iniciativa; obscureciam nele a idéia divina, enfraquecendo a fé nesse Ente supremo e onipotente que o povo hebreu tinha a missão de proclamar. Por isso não cessavam os profetas de o advertir contra os encantamentos e sortilégios que o perdiam(161).

As proibições de Moisés e dos profetas tinham apenas um fim: preservar os hebreus da idolatria dos povos vizinhos. É possível também que não visassem senão o abuso, o mau uso das evocações, porque, apesar dessas proibições, são abundantes na Bíblia os fenômenos espíritas. O papel dos videntes, dos oráculos, das pitonisas, dos inspirados de toda ordem é ali considerável. Lá não vemos Daniel, por exemplo, provocar, por meio da prece, fatos mediúnicos? (Daniel, IX, 21) O livro que traz o seu nome é, entretanto, reputado inspirado.

Como poderiam as proibições de Moisés servir de argumento aos crentes dos nossos dias, quando, nos três primeiros séculos da nossa era, nisso não viam os cristãos o menor obstáculo às suas relações com o mundo invisível?

Dizia S. João: "Não acrediteis em todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus." (I João, IV, 1.) Não há aí uma proibição; ao contrário.

Os hebreus, cuja crença geral era que a alma do homem, depois da morte, era restituída ao scheol, para dele jamais sair (Job, X, 21, 22), não hesitavam em atribuir ao próprio Deus todas essas manifestações. Deus intervém a cada passo, na Bíblia, e às vezes mesmo em circunstâncias bem pouco dignas dele.

Era costume consultar os videntes sobre todos os fatos da vida intima, sobre os objetos perdidos, as alianças, os empreendimentos de toda ordem. Lê-se em Samuel I, cap. IX, v. 9:

"Dantes, quando se ia consultar a Deus, dizia-se: Vinde, vamos ao vidente. - Porque os que hoje se chamam profetas, chamavam-se videntes."

O sumo-sacerdote mesmo proferia julgamentos ou oráculos

mediante um objeto de natureza desconhecida, chamado urim, que colocava sobre o peito. (Êxodo, XXV111, 30. - Números, XXVII, 21)

Por uma singular contradição nos que negavam as manifestações das almas, ia-se muitas vezes evocar os mortos, admitindo desse modo os fatos, depois de haver negado a causa que os produzia. É assim que Saul faz evocar o Espírito de Samuel pela pitonisa de Êndor 1 Samuel, XXVI1, 7-14.)(162)

De tais narrativas resulta que, não obstante a ausência de toda noção sobre a alma e a vida futura, a despeito das proibições de Moisés, entre os hebreus alguns acreditavam na sobrevivência e na possibilidade de comunicar com os mortos. Daí a explicar a desigualdade de inspiração dos profetas e seus freqüentes erros, pela inspiração dos Espíritos mais ou menos esclarecidos, não há mais que um passo. Como o não deram os autores judaicos? E, entretanto, não havia outra explicação. Sendo Deus a infinita sabedoria, não é possível considerar proveniente dele uma doutrina que descura de fixar o homem sobre um ponto tão essencial como o dos seus destinos além-túmulo; ao passo que os Espíritos não são senão as almas dos homens desencarnados, mais ou menos puras e esclarecidas, não possuindo sobre as coisas senão limitado saber. Sua inspiração, projetando-se nos profetas, devia necessariamente traduzir-se por ensinos, ora opulentos e elevados, ora vulgares e eivados de erros.

Em muitos casos mesmo deveram eles ter em conta, em suas revelações, as necessidades do tempo e o estado de atraso do povo a que eram dirigidos.

Pouco a pouco as crenças dos judeus se ampliaram e se completaram ao contacto de outros povos mais adiantados em civilização. A idéia da sobrevivência e das existências sucessivas

da alma, vinda do Egito e da índia, penetrou na Judéia. Os saduceus encrespavam os fariseus de terem assimilado dos orientais a crença nas vidas renascentes da alma. Esse fato é afirmado pelo historiador Josefo (Antig. Jud., I, XVIII). Os essênios e os terapeutas professavam a mesma doutrina. Talvez existisse mesmo, desde essa época na Judéia, como se provou mais tarde, ao lado da doutrina oficial, uma doutrina secreta, mais completa, reservada às inteligências de escol(163).

Como quer que seja, voltemos aos fatos espíritas mencionados na Bíblia, os quais estabelecem as relações dos hebreus com os Espíritos dos mortos, em condições análogas às que são hoje observadas.

Do mesmo modo que em nossos dias, os seus médiuns, a que eles chamavam profetas, eram como tais reconhecidos em razão de uma faculdade especial (Números, XII, 6), às vezes latente e que exigia um desenvolvimento particular semelhante ao ainda hoje praticado nos grupos espíritas, como o vemos a respeito de Josué, que Moisés "instrui" pela imposição das mãos (Números, XXVII, 15-23.) Esse fato se reproduz muitas vezes na história dos apóstolos.

Semelhante à dos médiuns, a lucidez dos profetas era intermitente. "Os mais esclarecidos profetas - diz Le Maistre de Sacy, em seu comentário do livro I dos Reis - nem sempre possuem a faculdade de arroubo na profecia." (Ver também Isaías, XXIX, 10.) Tal qual como hoje, as relações mediúnicas custavam por vezes a se estabelecer: Jeremias espera dez dias uma resposta à sua súplica. (Jer., XLII, 7.)

Outros exploravam sua pretensa lucidez, dela fazendo tráfico e ofício. Lê-se em Ezequiel, capítulo XIII, 2, 3 e 6:

“Filho do homem, dirige as tuas profecias aos profetas de Israel que se metem a profetizar, e dirás a estes que profetizam por sua cabeça: Aí dos profetas insensatos que seguem o seu próprio espírito e não vêem nada!”.

"...Eles vêem coisas vãs e adivinham a mentira, dizendo: o Senhor assim o disse, sendo que o Senhor os não enviou: e eles perseveram em afirmar o que uma vez disseram." (Ver também Miquéias, III, 11 e Jeremias, V, 31.)

Na antiguidade judaica, muitas vezes se recorria à música para facilitar a prática da mediunidade. Eliseu reclama um tocador de harpa para poder profetizar (II Reis, 111,15), e a obscuridade era considerada propícia a essa ordem de fenômenos.

"0 eterno quer assistir na obscuridade", diz Salomão, falando do lugar santo, por ocasião da consagração do Templo (Crôn., li, VI, 1) , e é, com efeito, no santuário que se dão muitas vezes as manifestações: aí se mostra a "nuvem" (II, Paralip., v, 13, 14), e nele vê Zacarias o anjo que lhe prediz o nascimento de seu filho. (Lucas, I, 10 e seguintes.)

A música era igualmente empregada para acalmar as pessoas atuadas por algum mau Espírito, como o vemos com Saul, que a harpa do jovem David aliviava. (I, Samuel, XVI, 14-23.)

Apreciando em seu valor o dom da mediunidade, aplicavam-se então, como ainda hoje, a desenvolvê-la, com a diferença apenas de que o que hoje se faz limitadamente entre os espíritas, se praticava outrora em maior escala. Já no deserto, Moisés, aquele grande iniciado, havia comunicado o dom da profecia a setenta ancião de Israel (Números, XI), e mais tarde, na Judéia, se contavam diversas escolas de profetas, ou, por dizer diversamente, de médiuns em Betel, Jericó, Gargala, etc.

A vida que aí se levava, toda de recolhimento, de meditação e prece, predispunha para as influências espirituais. Certos profetas prediziam o futuro; outros falando ao povo por inspiração, lhe excitavam o zelo religioso e o exortavam a uma vida moralizada.

As expressões de que se serviam para indicar que se achavam possuídos pelo Espírito fazem lembrar o modo por que esses fenômenos continuam a produzir-se em nossos dias."O peso, ou o Verbo do Senhor está sobre mim. O Espírito do Senhor entrou em mim. Eu vi, e eis o que diz o Senhor." Recordemos que, nessa época, toda inspiração era considerada diretamente proveniente da Divindade. "0 espírito caiu sobre ele", diz ainda a Escritura a respeito de Sansão, cuja mediunidade tinha o característico da impetuosidade. (Juízes, XV, 14.)

Quanto aos fenômenos em si mesmo, um exame, por pouco demorado que seja, das narrativas bíblicas, nos provará que eram idênticos aos que hoje se obtêm.

Passemo-los rapidamente em revista, começando pelos que, tendo primeiro chamado a atenção em nossos dias sobre o mundo invisível, simbolizam ainda, aos olhos de certos observadores muito superficiais ou pouco iniciados, o fato espírita em si mesmo; queremos falar dos movimentos de objetos sem contacto. A Bíblia ( IV Reis, VI, 6), nos refere que Eliseu faz vir à superfície, lançando um pedaço de madeira à água, o ferro de um machado que nela havia caído.

Da levitação, esse mesmo Eliseu transportado "para o meio dos cativos que viviam junto do rio Chobar" (Ez., III, 14, 15), e Filipe que subitamente desaparece aos olhos do eunuco e se encontra novamente em Azot (Atos, VIII, 39, 40), são exemplos notáveis. A propósito de escrita mediúnica, pode citar-se a das tábuas da lei (Êxodo, XXXII, 15, 16; XXXIV, 28). Todas as circunstâncias em que essas tábuas foram obtidas provam exuberantemente a intervenção do mundo invisível.

Não menos comprovativa é a inscrição traçada, por uma mão materializada, em uma das paredes do palácio durante um festim que dava o rei Baltasar. (Daniel, capítulo V.)

Poder-se-ia considerar como fenômenos de transporte o maná de que se alimentam os israelitas em sua jornada para Canaã, o pão e vaso d'água, colocados ao pé de Elias, quando despertou, por ocasião de sua fuga pelo deserto (I Reis, XIX, 5 e 6) etc.

Todos os fenômenos luminosos hoje observados têm igualmente seus paralelos na Bíblia, desde a simples irradiação perispirítica notada em Moisés (Êx., XXXIV, 29, 30), e no Cristo (transfiguração), e a produção de luzes (Atos, II, 3, e IX, 3) , até as aparições completas que não se contam na Bíblia, tão freqüentes são(164).

A mediunidade auditiva tem numerosos representantes na Judéia: os repetidos chamados dirigidos ao jovem Samuel (I Reis, III), a voz que fala a Moisés (_Êxodo, XIX, 19) a que se faz ouvir na ocasião do batismo do Cristo (Lucas, 111, 22 ) , como a que o glorifica pouco antes da sua morte (João, XII, 28), são outros tantos fatos espíritas.

As curas magnéticas são inúmeras. Ora a prece e a fé reforçam a ação fluídica, como no caso da filha de Jairo (Lucas, V11I, 41, 42, 49-56), ora a força magnética intervém só por si, sem participação da vontade (Marcos, V, 25-34), ou ainda se obtém a cura por imposição das mãos, ou por meio de objetos magnetizados (Atos, XIX, 11-12).

A mediunidade com o copo d'água igualmente se encontra nessas antigas narrativas. Que é, de fato, a taça de que José se servia (Gênesis, XLIV, 5) "para adivinhar", senão o vulgar copo d'água, ou a esfera de cristal, ou qualquer outro objeto que apresente uma superfície polida em que os médiuns atuais vêem desenhar-se quadros que são os únicos a perceber?

Na Bíblia podem-se ainda notar casos de clarividência, compreendendo, então, como hoje, sonhos, intuições, pressentimentos, formas ou derivados da mediunidade que, em todos os tempos, foram grandemente numerosos e se reproduzem agora às nossas vistas.

Digamos ainda uma palavra da inspiração, esse afluxo de elevados pensamentos que vem do alto e imprime às nossas palavras algo de sobre-humano. Moisés, que apresentava todos os gêneros de mediunidade, profere, em diferentes lugares, cânticos inspirados ao Eterno, como por exemplo, o do capítulo XXXII do Deuteronômio.

Um caso notável, assinalado nas Escrituras, é o de Balaão. Esse mago caldeu cede às reiteradas solicitações do rei de Moab, Balac, e vem dos confins da Mesopotâmia para amaldiçoar os israelitas. Sob a influência de Jeová é obrigado, repetidas vezes, a elogiar e abençoar esse povo, com decepção cada vez maior de Balac(165).

Os homens da Judéia, esses profetas de ânimo impetuoso, experimentaram também os benefícios da inspiração, e graças a esse dom, a esse sopro que anima os seus discursos, é que a antiga Bíblia hebraica deve ter sido muito tempo considerada o produto de uma revelação divina. Pretendeu-se desconhecer as numerosas falhas que nela se patenteiam aos olhos de um observador sem preconceitos, a insuficiência, a puerilidade dos conselhos, ou dos ensinos implorados a Deus (Gên., XXV, 22; I Reis, IX, 6; IV Reis, I, 1-4; I Reis, XXX, 1-8), quando nos censurariam, com razão, de tratar dessas coisas nos grupos espíritas. Esquecem-se as crueldades aprovadas, mesmo quase recomendadas por Jeová, os escabrosos detalhes, finalmente tudo o que, nesse livro, nos revolta ou provoca a nossa reprovação, para não ver senão as belezas morais que nele se contêm e sobretudo a expressão de uma fé viva e passional, que espera o reino da justiça, senão para a geração contemporânea, que só a esperança ampara e fortifica, ao menos para as gerações futuras.

N. 8 - Sobre o sentido atribuído às expressões deuses e demônios

Toda a antiguidade admitiu a existência dos deuses, expressão por que se designavam os Espíritos puros e elevados, e dos semideuses ou heróis, como pelas palavras demônios ou gênios entendia os Espíritos em geral.

Os cristãos mesmos se serviam dessas designações. Diz S. Pedro (I Coríntios, VIII, v. 5, 6):

"Porque, ainda que haja alguns que se chamem deuses, ou no céu, ou na terra, não temos, entretanto, senão um único Deus, o Pai, de quem tiveram o ser todas as coisas."

Em seus Comentários sobre S. João Oiv. II n. 2), diz Orígenes:

"O Deus eterno tem direito a maiores homenagens; somente ele tem direito à verdadeira adoração e não os outros deuses que com ele vivem e são seus ministros e subordinados, sendo ele próprio seu Deus e seu criador."

Santo Agostinho diz (De civitate Dei) , I, VIII, capítulo XXIV:

"Os demônios (maus Espíritos) não podem ser amigos dos deuses cheios de bondade, a que nós chamamos santos anjos."

É no mesmo sentido que S. Justino, em seu Discurso aos gregos, n. 5, assim se exprime : "Cultivando bem a fé, nós podemos "nos tornar deuses", e S. Irineu (Contra hocreses, I. IV , capítulo XXXVIII) diz: "Nós ainda não somos mais que homens, mas um dia seremos deuses."

0 mesmo S. Justino, Apologética, I, 18 (edição dos Beneditinos de 1742, pág. 54), escreve o seguinte a respeito das manifestações dos mortos:

"A necromancia, as evocações das almas humanas... vos demonstrarão que as almas, mesmo depois da morte, são dotadas de sentimento; os que se acham possessos dos espíritos dos mortos são por todos chamados demoníacos e furiosos (et qui ab animabus mortuorum correpti projiciuntur daemoniaci et furiosi ab omnibus appellati)."

Eis aqui de que modo, no século XVII E Fondet, com a aprovação dos mais eminentes doutores eclesiásticos da Sorbona, traduzia, ou antes, desnaturava esta mesma passagem: "...e esses pobres desgraçados, que os espíritos dos mortos agarram, lançam por terra e atormentam, como o sabeis, de muitos modos e que são comumente denominados furiosos, maníacos, e agitados pelos demônios." É verdade que, em seu prefácio, o citado tradutor havia tido o cuidado de prevenir os leitores de que em S. Justino "se encontra em certos trechos muitas coisas obscuras, particularmente no tocante aos demônios, sobre os quais o autor escreve segundo as opiniões do seu tempo, que não tiveram continuidade na Igreja, e que não fariam agora senão embaraçar os espíritos. Poder-se-ão mesmo notar nessa apologia alguns ligeiros vestígios, que todavia se teve o cuidado de suavizar quanto possível, sem violar a fidelidade da versão ( ? )" ( E Fondet, Segunda Apologia de S. Justino, pág. 48 e prefácio; Paris, Savreux, 1670) Indicaremos também Tertuliano, Apologética, capítulo XXIII.

N. 9 - Sobre o perispírito ou corpo sutil; opinião dos padres da Igreja

Às citações contidas em nosso estudo sobre a ressurreição dos mortos (cap. VIU acrescentaremos as opiniões de alguns padres da Igreja.

Tertuliano declara que a corporeidade da alma é afirmada pelos Evangelhos: "Corporalitas animae in ipso Evangelico relucescit", porque - acrescenta ele - se a alma não tivesse um corpo, "a imagem da alma não teria a imagem dos corpos". (Tratado De anima, caps. VII, VIII e IX, edição de 1657, pág. 8.)

S. Basílio fala do corpo espiritual, como Tertuliano o havia feito. Em seu tratado do Espírito Santo assegura ele que os anjos se tornam visíveis pelas espécies de seu próprio corpo, aparecendo aos que são dignos disso. ( S. Basílio, Liber de Spiritu Sancto, capítulo XVI, edição benedict. de 1730, t. III, pág. 32.)

Essa doutrina era também a de S. Gregório, de S. Cirilo de Alexandria e de Santo Ambrósio. Assim se exprime este último:

"Não se suponha que ser algum seja isento de matéria em sua composição, excetuada unicamente a substância da adorável Trindade." (Abraham, liv. II, § 58, ed. benedic. de 1686, t. 1, col. 338.)

S. Cirilo de Jerusalém escreve:

"O nome "espírito" é um nome genérico e comum: tudo o que não possui um corpo pesado e denso é de um modo geral denominado espírito." (Catechesis, XVI, ed. benedic. de 1720, págs, 251, 252.)

"Em outras passagens atribui S. Cirilo, quer aos anjos, quer aos demônios, quer às almas dos mortos, corpos mais sutis que o corpo terrestre: Cat. XII, § 14; Cat. XVIII, § 19." (Obra citada, pág. 252. Nota do beneditino Dom A. Toutée.)

Evódio, bispo de Uzala, escreve em 414 a Santo Agostinho, inquirindo-o acerca da natureza e causa de aparições de que lhe dá muitos exemplos, e para lhe perguntar se depois da morte:

"Quando a alma abandonou este corpo grosseiro e terrestre, não permanece a substância incorpórea unida a algum outro corpo, não composto dos quatro elementos como este, porém, mais sutil, e que participa da natureza do ar ou do éter?"

E assim termina a sua carta

"Acredito, portanto, que a alma não poderia existir sem corpo algum" (Obra de Santo Agostinho, edição benedict. de 1679, t. 11, carta 158, col. 560 e seguintes.)

Ver também a carta de Santo Agostinho a Nebrido, escrita em 390, em que o bispo de Hipona assim se exprime:

"Necessário é te recordares de que agitamos muitas vezes, em discussões que nos punham excitados e sem fôlego, essa questão de saber se a alma não tem por morada alguma espécie de corpo, ou alguma coisa análoga a um corpo, que certas pessoas, como sabes, denominam o seu "veículo". ( Santo Agostinho, op. cit., t. II, carta 14, cols. 16 e 17.)

Diz S. Bernardo:

"Atribuiremos, pois. com toda a segurança únicamente a Deus a verdadeira incorporeidade, assim como a verdadeira imortalidade; porque, único entre os espíritos, ultrapassa toda a natureza corporal, o suficiente para não ter necessidade do concurso de corpo algum para qualquer trabalho, pois que só a sua vontade espiritual, quando a exerce, tudo lhe permite fazer." (Sermão VI in Cantica, ed. Mabillon, t. I, col. 1277.)

Finalmente, S. João de Tessalonica resume nestes termos a questão, em sua declaração ao segundo concílio de Nicéia (787), o qual adotou as suas opiniões:

"Sobre os anjos, os arcanjos e as potências, - acrescentarei também - sobre as almas, a Igreja decide que esses seres são na verdade espirituais, mas não completamente privados de corpo, ao contrário, dotados de um corpo "tênue, aéreo ou ígneo". Sabemos que assim têm entendido muitos santos padres, entre os quais Basílio, cognominado o grande, o bem-aventurado Atanásio e Metódio e os que ao lado deles são colocados. Não há senão Deus, únicamente, que seja incorpóreo e sem forma. Quanto às criaturas espirituais, não são de modo algum incorpóreas." (História Universal da Igreja Católica, pelo abade Rohrbacher, doutor em Teologia, tomo XI, págs. 209, 210.)

Um concilio, realizado no Delfinado, na cidade de Viena, em 3 de abril de 1312, sob Clemente V, declarou heréticos os que não admitissem a materialidade da alma. (O Espiritualismo na História, de Rossi de Giustiniani.)

Acreditamos dever lembrar essas opiniões, porque constituem outras tantas afirmações em favor da existência do perispírito. Este não é realmente outra coisa senão esse corpo sutil, invólucro inseparável da alma, indestrutível, quanto ela, entrevisto pelas autoridades eclesiásticas de todos os tempos.

Essas afirmações são completadas pelos testemunhos da ciência atual. As sucessivas pesquisas da Sociedade de Investigações Psíquicas, de Londres, evidenciaram mil e seiscentos casos de aparições de "fantasmas" de vivos e de mortos. A existência do perispírito é, além disso, demonstrada por inúmeras moldagens de mãos e de rostos fluídicos materializados, pelos fenômenos de exteriorizações e desdobramentos de vivos, pela visão dos médiuns e sonâmbulos, por fotografias de falecidos, numa palavra, por um imponente conjunto de fatos devidamente comprovados(166). (Ver nota número 12.)

Certos escritores católicos confundem voluntariamente a ação do perispírito e suas manifestações depois da separação do corpo humano com a idéia da "ressurreição da carne". Já fizemos notar que essa expressão raramente se encontra nas escrituras. Aí de preferência se encontra a de "ressurreição dos mortos". (Ver, por exemplo, I Coríntios, XV, 15 e seguintes.)

A ressurreição da carne se torna impossível pelo fato de que as moléculas componentes do nosso corpo atual pertenceram no passado a milhares de corpos humanos, como pertencerão a milhares de outros corpos no futuro. No dia do juízo, qual deste poderia reivindicar a posse dessas moléculas errantes?

A ressurreição é um fato espírita, que só o Espiritismo toma compreensível. Para o explicar, são os católicos obrigados a recorrer ao milagre, isto é, à violação, por Deus, das leis naturais por ele próprio estatuídas.

Como, sem a existência do perispírito, sem a dupla corporeidade do homem, poder-se-iam explicar os numerosos casos de bilocação relatados nos anais do Catolicismo?

Afonso de Liguóri foi canonizado por se haver mostrado simultaneamente em dois lugares diferentes.

Santo Antônio defende seu pai de uma acusação de assassínio perante o Tribunal de Pádua, e denuncia o verdadeiro culpado, no momento mesmo em que pregava na Espanha, em presença de grande número de fiéis.

S. Francisco Xavier se mostra várias vezes à mesma hora em lugares muito distantes entre si.

É possível deixar de ver nesses fatos casos de desdobramento do ser humano, e a ação, a distância, do seu invólucro fluídico? O mesmo sucede com os numerosos casos de aparições de mortos, mencionados nas Escrituras. Eles não são explicáveis senão pela existência de uma forma semelhante a outra que na Terra o Espírito possuía, mais sutil, porém, e mais tênue, e que sobrevive à destruição do corpo carnal. Sem perispírito, sem forma, como poderiam os Espíritos fazer-se reconhecer pelos homens? Como se poderiam eles, no espaço, entre si reconhecer?

N. 10 - Galileu e a Congregação do Index.

Eis aqui um extrato do texto da condenação de Galileu em 1633, fotografado nos arquivos do Vaticano por um fervoroso católico, o conde Henrique de L' Épinois:

"Foste denunciado em 1615 ao Santo Ofício:

Porque sustentavas como verdadeira uma doutrina falsa, que muitos propagavam, a saber: "que o Sol é imóvel no centro do mundo e a Terra tem um movimento diurno";

Porque ensinavas essa doutrina aos teus discípulos; porque entretinhas a esse respeito correspondência com matemáticos da Germânia; porque publicavas cartas sobre as manchas solares, nas quais apresentavas como verdade essa doutrina; porque às objeções que te eram dirigidas respondias explicando a Santa Escritura segundo a tua idéia...

O tribunal quis pôr um paradeiro aos inconvenientes e aos danos que daí provinham e se agravavam em detrimento da fé.

Conforme a ordem do papa e dos cardeais, os teólogos encarregados dessa missão assim qualificaram as duas proposições:

"O Sol está no centro do mundo e é imóvel". Proposição absurda, falsa em filosofia e herética em sua expressão, porque é contrária à Santa Escritura.

"A Terra não é o centro do mundo; não é imóvel, mas obedece a um movimento diurno". Proposição igualmente absurda, falsa em filosofia e, considerada no ponto de vista teológico, errônea na fé...

Declaramos que te tornaste profundamente suspeito de heresia:

Porque acreditaste e sustentaste uma doutrina falsa e contrária às santas e divinas Escrituras, a saber: "que o Sol é o centro do Universo e não se move de modo algum do Oriente para o Ocidente; que a Terra se move e não é o centro do mundo." Porque acreditaste poder sustentar, como provável, uma opinião que foi declarada contrária à Santa Escritura.

Em conseqüência declaramos que incorreste em todas as censuras e penas cominadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra aqueles que desobedecem aos estatutos e outros decretos promulgados.

Das quais censuras nos praz absolver-te uma vez que previamente, de ânimo sincero e fé verdadeira, abjures diante de nós, maldigas e detestes, segundo a fórmula que te apresentamos, os ditos erros e heresias, e qualquer outro erro e heresia contrária à igreja Católica, Apostólica, Romana.

E, a fim de que o teu erro pernicioso e grave e a tua desobediência não fiquem impunes;

A fim de que, para o futuro, sejas mais cauteloso e sirvas de exemplo aos outros para que evitem esses delitos:

Declaramos que, por édito público, o livro dos Diálogos, de Galileu, é proibido.

Condenamos-te à prisão ordinária deste Santo Ofício por um tempo que será limitado a arbítrio nosso.

A título de penitência salutar, ordenamos-te que recites durante três anos, uma vez por semana, os sete salmos da Penitência.

Reservamo-nos o poder de moderar, alterar e relevar no todo ou em parte as penas e penitências acima."

Ditou um teólogo, há quinze anos, ao Sr. Henri Lasserre as seguintes linhas, que o autor de Nossa Senhora de Lourdes e da Nova tradução dos Evangelhos (esta última obra condenada também pelo índex), reproduz em suas Memórias à Sua Santidade.

"Esse decreto, que anatematizou a admirável descoberta do grande astrônomo e que o puniu com prisão, foi um duplo e completo erro. Foi um erro incidente e secundário sobre a Astronomia; foi, antes de tudo, um erro principal sobre a doutrina. Coisa notável: por todos os termos do decreto, a Sagrada Congregação havia-se condenado a si mesma.

Qualificando de absurdo, isto é, de contrário à razão o que lhe é conforme, a Sagrada Congregação estava convencida de se achar fora da razão e oposta à razão.

Qualificando de falso, isto é, de contrário à verdade o que lhe é conforme, ela estava convencida de achar-se fora da verdade e oposta à verdade.

Qualificando de heresia, isto é, de contrário à ortodoxia o que é uma lei divina do Universo visível, estava convencida de achar-se fora da ortodoxia e oposta à ortodoxia, porque, se é uma heresia subtrair-se à crença em um dogma da Igreja, não é menor heresia querer impor como dogma o que não o é, e particularmente o erro, o qual é, em si mesmo, como antinomia de todos os dogmas.

Qualificando de contrário às Escrituras um admirável decreto do Criador, a Sagrada Congregação estava convencida de achar-se fora da ciência das Escrituras e oposta à sua verdadeira interpretação.

Cada qual em Roma, individualmente, não tardou, na intimidade da palestra, a confessar e deplorar o erro cometido pelos eminentíssimo juizes.

0 que, todavia, houve de mais deplorável ainda, foi que, apesar das queixas e reclamações, apesar das provas e evidências, das ordens de Bento XIV e de uma sentença de trancamento que esse pontífice fez baixar em 10 de maio de 1754, apesar de um segundo decreto da mesma natureza, lançado por Pio VII em 25 de setembro de 1822, a repugnância em se retratar ela mesma, ou ser pelo Papa retratada, foi tão tenaz na congregação romana que, durante mais de dois séculos e em oposição à verdade conhecida, esse tribunal manteve o seu decreto sobre o catálogo do índex librorum prohibitorum.

As obras que contêm as descobertas de Galileu e de Copérnico, condenadas em 23 de agosto de 1634 com os qualificativos de absurdas, de falsas, de heréticas, de contrárias às santas e divinas Escrituras, não foram excluídas do índex senão na edição de 1832. Aí permaneceram 201 anos."

N. 11 - Pio X e o Modernismo

0 decreto Lamentabili sane exitu (3 de julho de 1907) alcança objetivamente:

"Os escritores que, ultrapassando os limites fixados pelos Padres e a mesma santa Igreja, pretendem um progresso dos dogmas a pretexto de melhor os compreender e em nome de pesquisas históricas, mas que na realidade os corrompem."

Entre as proposições condenadas figuram as que sustentam que:

"11 -A inspiração divina não se estende a tal ponto a toda a santa Escritura que a preserve de qualquer erro em todas e cada uma de suas partes."

Assim a idéia da estabilidade da Terra e todos os erros científicos da Bíblia seriam inspirados, e é proibido dizer o contrário.

"22 - Os dogmas que a Igreja apresenta como revelados, não são verdades baixadas do céu, mas uma certa interpretação dos fatos religiosos que o espírito humano chegou a adquirir com laborioso esforço."

Da condenação nessa proposição resulta que o espírito humano é impotente para descobrir a menor verdade na ordem religiosa e por si mesmo se elevar à concepção da existência de Deus e da imortalidade da alma.

"53 -A constituição orgânica da Igreja não é imutável, mas permanece a sociedade cristã submetida, como toda sociedade humana, a uma perpétua evolução."

Enleada assim pelos seus próprios ensinos, a Igreja nada pode modificar, mesmo em "sua constituição orgânica". Ora, resulta de fatos patentes que ela tem muitas vezes e consideravelmente mudado. Explique quem puder semelhante anomalia. Não se pode formular condenação mais temerária.

"56 - A Igreja Romana se tornou a cabeça de todas as igrejas, não por uma disposição da divina Providência, mas pelo fato de circunstâncias puramente políticas."

Os fatos atestam a verdade dessa proposição condenada. Nos primeiros tempos as igrejas particulares eram independentes de Roma.

É preciso não esquecer que a Igreja Romana só de muito longe se prende, com o seu catolicismo, à Igreja cristã, que tira seu nome da estada de S. Barnabé e de S. Paulo em Antioquia. Eis o que a esse propósito dizem os Atos dos Apóstolos: "E dali partiu Barnabé para Tarso, em busca de Paulo (S. Paulo); e, tendo-o achado, o levou a Antioquia. E aqui nesta igreja passaram eles todo um ano e instruíram uma grande multidão de gente, de maneira que foi em Antioquia que começaram os discípulos a ser chamados cristãos." (Cap. XI, 25 e 26)

"57 - A Igreja se mostra inimiga do progresso das ciências naturais e teológicas."

Aí está, por exemplo, uma proposição que merecia bem ser condenada. A Igreja é inimiga do progresso, mas tal não se mostra ela jamais. Nesse ponto de vista Pio X tem razão, (Ver nota n. 10.)

Epístola apostólica para a ereção de um Instituto Bíblico em Roma, 7 de maio 1909:

"Tem por fim este Instituto defender, promulgar, esclarecer a sã doutrina dos Livros santos, interpretados de conformidade com as regras estabelecidas ou a estabelecer pela Santa Sé apostólica, contra as opiniões falsas, errôneas, temerárias e heréticas, sobretudo as mais recentes".

Inútil é fazer notar que esses diversos regulamentos nos retrotraem aos tempos da Inquisição, pelo fato de se imporem às consciências em virtude de um pretenso poder divino.

N. 12 - Os fenômenos espíritas contemporâneos; provas da identidade dos Espíritos

Graças ao espiritualismo experimental, o problema da sobrevivência, cujas conseqüências morais e filosóficas são incalculáveis, recebeu uma solução definitiva. A alma se tornou objetiva, por vezes tangível; a sua existência se revelou, depois da morte como durante a vida, mediante manifestações de toda ordem.

Ao começo não ofereciam os fenômenos físicos mais que uma insuficiente base de argumentação; mas depois os fatos revestiram um caráter inteligente e se acentuaram a ponto de tornar-se impossível qualquer contestação.

Foi mediante provas positivas que a questão da existência da alma e sua imortalidade ficou resolvida, Fotografaram-se as radiações do pensamento; o Espírito, revestido de seu corpo fluídico, do seu invólucro imperecível, aparece na placa sensível. A sua existência se tornou tão evidente como a do corpo físico.

A identidade dos Espíritos acha-se estabelecida por inúmeros fatos. Acreditamos dever mencionar alguns deles:

O Sr. Oxon (aliás Stainton Moses), professor da Universidade de Oxford, em seu livro Spirit Identity, refere o caso em que a mesa faz uma longa e circunstanciada narrativa da morte, com a menção da idade, até ao número de meses, e os nomes familiares (quatro quanto a um deles e três quanto a outro), de três criancinhas, filhas de um mesmo pai, que haviam sido subitamente arrebatadas pela morte. "Nenhum de nós tinha conhecimento desses nomes pouco comuns. Elas tinham morrido na índia, e quando nos foi ditada a comunicação, não dispúnhamos de meio algum aparente de verificação." Essa revelação foi, todavia, verificada e, mais tarde, reconhecida exata pelo testemunho da mãe dessas crianças, que o Sr. Oxon veio a conhecer ulteriormente.

O mesmo autor cita o caso de um certo Abraão Florentino, falecido nos Estados Unidos, inteiramente desconhecido dos experimentadores e cuja identidade foi rigorosamente comprovada.

A história de Siegwart Lekebusch, jovem alfaiate que morreu esmagado por um trem de ferro, prova ainda que é contrário à verdade afirmar que as personalidades que se manifestam pela mesa são sempre conhecidas dos assistentes.

De acordo com Animismo e Espiritismo, de Aksakof, a identidade póstuma dos Espíritos se prova:

1- Por comunicações da personalidade na língua vernácula, desconhecida do médium (ver, página 538, o caso de Miss Edmonds, do Sr. Turner, de Miss Scongall e da senhora Corvin, que conversa com um assistente por meio de gestos conforme ao alfabeto dos surdos-mudos que no estado de vigília lhe era desconhecido).

2- Por meio de comunicações dadas no estilo característico do defunto, ou com expressões que lhe eram familiares, recebidas na ausência de pessoas que o tivessem conhecido (pág. 543): - terminação de um romance de Dickens, Edwin Drood, por um jovem operário iletrado, sem que seja possível reconhecer onde termina o manuscrito original e onde começa a comunicação mediúnica.

Ver também a história de Luíz XI, escrita pela senhorita Hermance Dufaux, aos catorze anos de idade (Revue Spirite, 1858). Essa história, muito documentada, contém ensinos até então inéditos.

3- Por fenômenos de escrita em que se reconhece a do defunto (pág. 345): - carta da Sra. Livermore, por ela mesma escrita depois de sua morte. Esse Espírito estabeleceu a sua identidade, mostrando-se, escrevendo e conversando como quando na Terra. Fato notável: o Espírito escreveu mesmo em francês, língua ignorada da médium, Kate Fox; - o caso em que o Sr. Owen obtém uma assinatura de Espírito que foi reconhecida idêntica por um banqueiro (ver Guldenstubbe, A Realidade dos Espíritos); - escrita direta de uma parenta do autor, reconhecida idêntica à sua ortografia durante a vida. (Esses fatos foram muitas vezes obtidos em nosso próprio círculo de experiências.)

4-Por comunicações que encerram um conjunto de particularidades relativas à vida do defunto e recebidas na ausência de qualquer pessoa que a tivesse conhecido (ver pág. 436). Com o concurso mediúnico da Sra. Conant, muitos Espíritos desconhecidos do médium foram identificados com pessoas que tinham vivido em diferentes países (pág. 559 e seguintes): o caso do velho Chamberlain, o de Violette, o de Robert Dale Owen, etc.

5- Pela comunicação de fatos conhecidos unicamente pelo desencarnado e que só ele possa comunicar (ver pág. 466): o caso do filho do Dr. Davey, envenenado e roubado em pleno mar, fato em seguida reconhecido exato; - descoberta do testemunho do barão Korff; o Espírito Jack, que indica o que deve e o que lhe é devido, etc.

6°- Por comunicações que não são espontâneas, como as que precedem, mas provocadas por chamados diretos ao falecido e recebidas na ausência de pessoas que o tenham conhecido (ver pág. 585): resposta, por Espíritos, a cartas fechadas (médium Mansfield); - escrita direta dando resposta a uma pergunta ignorada pelo médium, Sr. Watkins.

7- Por comunicações recebidas na ausência de qualquer pessoa que houvesse conhecido o desencarnado, revelando certos estados psíquicos, ou provocando sensações físicas que lhe eram peculiares (pág. 597); - o Espírito de uma louca ainda perturbado, no espaço; o caso do Sr. Elias Pond, de Woonsoket, etc.

(Esses fenômenos se produziram em número considerável de vezes nas sessões por nós mesmos dirigidas.)

8-° Pela aparição da forma terrestre do desencarnado (pág. 605).

Os Espíritos se têm, às vezes, servido dos defeitos naturais de seu organismo material para fazerem-se reconhecer depois da desencarnação, reproduzindo, por meio de materialização, esses acidentes. Ora é a mão com dois dedos recurvados para a palma, em conseqüência de uma queimadura, ora o indicador dobrado na segunda falange, etc.

Poderíamos alongar indefinidamente esta lista de identidade de Espíritos, de que um certo número de casos figura também em nosso livro No Invisível, capítulo XXI.

Julgamos dever acrescentar os três seguintes, que nos parecem característicos e são firmados em testemunhos importantes.

O primeiro, relatado por Myers em sua obra sobre a Consciência Subliminal, é concernente a uma pessoa muito conhecida do autor, o Sr. Brown, cuja perfeita sinceridade ele garante. Um dia esse senhor encontra um negro em quem reconhece um cafre; fala-lhe na língua do seu país e o convida a visitá-lo. Na ocasião em que esse preto africano se apresenta em sua casa, a família do Sr. Brown fazia experiências espíritas. Introduzido o visitante, indagam se haveria amigos seus presentes à sessão. Imediatamente a filha da família, que de cafre não conhecia nem uma palavra, escreve diversos nomes nessa língua. Lidos ao preto, provocam neste um vivo espanto. Vem depois uma mensagem escrita em língua cafre, cuja leitura ele compreende perfeitamente, com exceção de uma palavra desconhecida para o Sr. Brown.

Em vão a pronuncia este de vários modos: o visitante não lhe percebe o sentido. De repente escreve o médium: "Dá um estalo com a língua". Então se recorda prontamente o Sr. Brown do estalo característico de língua que acompanha o som da letra t no alfabeto cafre. Pronuncia desse modo e logo se faz compreender.

Ignorando os cafres a arte de escrever, o Sr. Brown se admira de receber uma mensagem escrita. Foi-lhe respondido que essa mensagem fora ditada, a pedido dos amigos do cafre, por um amigo dele que falava correntemente essa língua. 0 negro parecia aterrado com o pensamento de que ali estivessem mortos, invisíveis.

0 segundo caso é relativo à aparição de um Espírito, chamado Nefentes, na sessão realizada em Cristiânia na casa do professor E., servindo de médium a Sra. d'Esperance. 0 Espírito deu o molde da própria mão em parafina. Levando esse modelo oco a um profissional, para o reproduzir em relevo, causou a sua e a estupefação dos seus operários: bem compreendiam eles que mão humana o não pudera produzir, porque o teria quebrado ao ser retirada, e declararam que era coisa de feitiçaria.

Noutra ocasião escreveu Nefentes no canhenho do professor E. uns caracteres gregos. Traduzidos, no dia seguinte, do grego antigo para linguagem moderna, diziam essas palavras: "Eu sou Nefentes, tua amiga. Quando tua alma se sentir opressa por intensa dor, invoca-me, a mim Nefentes, e eu acudirei prontamente a aliviar-te os sofrimentos."

0 terceiro caso, finalmente, é atestado como autêntico pelo Sr. Chedo Mijatovitch, ministro plenipotenciário da Sérvia em Londres, e de nenhum modo espírita em 1908, data de sua comunicação ao Light. Solicitado por espíritas húngaros a entrar em relação com um médium, a fim de resolver certa questão relativa a um antigo soberano sérvio, morto em 1350, dirigiu-se ele à residência do Sr. Vango, de quem muito se falava nessa época e que ele jamais vira precedentemente. Adormecido, o médium anunciou a presença de um moço que muito desejava fazer-se ouvir, mas cuja língua não entendia. Acabou, todavia, reproduzindo algumas palavras, com a curiosa particularidade de começar cada uma delas pela última silaba, para em seguida, a repetir na ordem requerida, voltando à primeira, assim: "lim, molim; te, shite, pishite; liyi, taliyi Nataliyi, etc." Era sérvio, sendo esta a tradução:

"Peço-te que escrevas a minha mãe Natália e lhe digas que suplico o seu perdão." 0 Espírito era o do jovem rei Alexandre. O Sr. Chedo Mijatovitch o pôs tanto menos em dúvida quanto não tardaram novas provas de identidade em vir juntar-se à primeira: descrição de sua aparência, pelo médium, e o seu pesar de não ter atendido a um conselho confidencial que, dois anos antes de seu assassínio, lhe havia dado o diplomata consultante. (Ver, em relação a estes três casos, os Annales des Sciences Psychiques, 12 e 16 janeiro 1910, pág. 7 e seguintes.)

N. 13 - Sobre a telepatia

A Sociedade de Investigações Psíquicas de Londres tomou a iniciativa de numerosas inquirições sobre os fenômenos de telepatia, de aparições e outras manifestações da mesma ordem.

A primeira dessas inquirições permitiu registrar na Inglaterra cerca de oitocentos casos de aparições, relatados na obra de Myers, Podmore e Gurney, intitulada Phantasms of the Living ("Fantasmas dos Vivos").

Uma segunda inquirição, mais recente, revelou mais 1.652 casos. Todos esses fatos foram consignados e publicados em dois volumes de processos verbais: Proceedings of the Society for Psychical Researches. Os relatórios e outros documentos que os acompanham estão assinados por homens de ciência que ocupam eminentes posições nas academias e outras corporações doutas: astrônomos, matemáticos, físicos, químicos, etc. Entre as assinaturas encontram-se nomes como os dos Srs. Gladstone, Balfour, etc.

Essas aparições ocorrem quase sempre no momento da morte, ou depois da morte da pessoa cuja imagem reproduzem. Há também casos em que um homem vivo aparece a outro sem o saber. Pretenderam atribuir a esses fenômenos um caráter exclusivamente subjetivo; procuraram explicá-los pela alucinação, mas do exame atento dos processos verbais resulta que esses fatos têm caráter objetivo e real, pois que não impressionam somente criaturas humanas, tanto assim que, segundo pôde ser verificado por movimento de terror inexplicados, animais também os percebiam.

Em certos casos as mesmas aparições foram vistas sucessivamente, em diversos pavimentos de uma casa, por diferentes pessoas. Outros fenômenos da mesma natureza são acompanhados de manifestações físicas: ruídos, pancadas que ressoam, vozes que se ouvem, portas que se abrem, objetos deslocados por fantasmas.

Myers, autor da obra precedentemente citada, muito tempo hesitou em concluir pela existência dos Espíritos; mas, na impossibilidade de encontrar alhures a causa inteligente desses fenômenos, chegou a dizer isto (Annales des Sciences Psychiques, agosto de 1892, pág. 246): "O método espírita é, de si mesmo, necessário e verdadeiro".

Essas investigações, feitas na Inglaterra e publicadas com o testemunho de pessoas cuja honorabilidade está acima de toda suspeita, foram prosseguidas na França pelo Dr. Dariex, pelo professor Richet, da Academia de Medicina de Paris, e pelo coronel de Rochas. Os resultados, verdadeiramente notáveis e idênticos aos obtidos do outro lado da Mancha, acham-se consignados nos Annales des Sciences Psychiques, citados acima.

O Sr. C. Flammarion também relata grande número desses fatos em sua obra L1nconnu et les Problèmes Psychiques.

N. 14 - Sobre a sugestão ou a transmissão do pensamento

No que se refere às teorias da telepatia, da transmissão do pensamento ou da sugestão, o Dr. Roman Uricz, chefe da clínica do Hospital de Bialy-Kamien, na Galícia, relata a seguinte experiência feita com uma rapariguinha de catorze anos, muito pouco instruída:

"Tomei cem pequenos cartões brancos e neles escrevi os algarismos de 0 a 9; dez cartões com 0, dez com algarismo 1, outros dez com 2 e assim sucessivamente. Depois de bem misturados, apagou-se a luz e eu tirei do maço alguns cartões, colocando-os enfileirados, da esquerda para a direita, sobre a mesa. Pedi então à Inteligência que escrevesse o número assim formado. Obtida a resposta por escrito, acendia-se de novo a lâmpada e lia-se o número: a resposta sempre foi correta. Não podia ser isso leitura de pensamento, pois que nenhum de nós conhecia o número em questão...

"Os conhecimentos da médium em aritmética são muito escassos, não tendo ela aprendido na escola de sua aldeia mais que as quatro principais operações. Poder-se-ia suspeitá-la de ser clarividente.

"Para garantir-me contra essa possibilidade, combinei a seguinte experiência: na mais completa obscuridade, coloquei vinte cartões ao lado um do outro e pedi à Inteligência que me desse a raiz quadrada do número assim formado. A resposta foi dada em alguns minutos: 7.501.273.011. Estava certa, porque o número formado pelos cartões era:

56.269.096.785.557.006.121

"Repeti doze vezes essa experiência. De três não obtive resposta; uma vez a resposta veio errada, mas oito vezes foi exata. "Semelhantes operações de aritmética estão absolutamente fora da capacidade do médium. Os resultados de minhas experiências não podem ser, portanto, atribuídos nem à transmissão de pensamento, nem à clarividência." (Ver Reme Spirite, abril, 1907)

Por outro lado, a Sra. Britten, escritora espiritualista de nomeada, na Inglaterra, cita uma experiência decisiva de Robert Hare, professor na Universidade de Pensylvânia, que foi muitas vezes referida, mas que ela narra como tendo-a ouvido pessoalmente do sábio professor. Experimentava ele, como tantos outros, com o único fim de descobrir o que a priori havia decidido não passar de abominável farsa. Depois de investigações prosseguidas durante longos meses, veio ele por fim a concluir que os fenômenos revelavam a existência de uma força até então desconhecida, e que os ensinos transmitidos emanavam todos da inteligência, ou, por dizer diversamente, da transmissão de pensamento; é o que, contemporaneamente, foi apresentado como uma nova descoberta, a que deram o nome de telepatia.

Para neutralizar essa força, o professor inventou uma espécie de quadrante percussor cujos movimentos eram influenciados por médiuns de efeitos físicos, enquanto uma agulha, acionada pelo poder mediúnico, indicava as letras do alfabeto colocado do lado da mesa, oposto ao médium, de modo que lhe fosse absolutamente impossível dirigir a agulha e não pudesse ver nem conhecer as comunicações ditadas. O quadrante era então influenciado pelo poder do médium, mas sem que este pudesse verificar a palavra soletrada, ficando também os assistentes na impossibilidade de dirigir a força que fazia mover o quadrante.

Foi no curso de uma série de experiências feitas por esse meio que um Espírito, que se dizia o primogênito do professor - um pequenino falecido aos dois anos de idade - vinha constantemente comunicar-se.

Posto que afirmasse haver-se tornado um homem, ele designava habitualmente pelo nome de Pequeno Tarley, pretendendo pronunciar Tarley em lugar de Charley, para dar, com essa designação infantil, uma prova da sua identidade.

Um dia em que o quadrante desempenhava lentamente a sua tarefa sob a mão de um poderoso médium, e o Pequeno Tarley se tinha anunciado, "pois bem, Pequeno Tarley, diz-lhe o professor, se és verdadeiramente tu que estás ai, pois que parece saberes tanta coisa, dize o que tenho eu em um pacote que está no bolso do meu casaco.

- Tens, pai - soletrou o Espírito -, em um pedaço de papel amarelo desbotado, um retalho do véu de renda amarela, ainda mais desbotado, que me foi retirado do rosto quando me achava deitado no pequenino ataúde.

- Pequeno Tarley - respondeu em tom de motejo o professor - vejo que muito pouco sabes, pois que nada de semelhante tenho no bolso.

Depois, voltando-se para as pessoas que formavam o círculo, disse-lhes gravemente:

- Vede, amigos, o que são as pretensas comunicações dos Espíritos, quando não há cérebro em que possam ler. É um sapatinho o que tenho no bolso; retirei-o, antes de fecharem o esquife, de um pé de meu filho morto e conservei-o cuidadosamente em uma gaveta durante um quarto de século, em memória do meu primogênito, com os seus brinquedos e outras lembranças do meu caro desaparecido. Confessai agora que esse Espírito se diverte conosco.

Dizendo essas palavras, tira do bolso um embrulho e desdobra, um após outro, um certo número de velhos pedaços de papel amarelo; chega finalmente ao último que continha... um véu de renda amarela; no envoltório, a falecida mãe escrevera que havia sido retirado de sobre o rosto do seu pequenino morto...

O professor errara, mas o Espírito não se tinha enganado.

NOTA DA EDITORA - Diversas passagens, interpretativas desta obra, nas quais Leon Denis alude à autenticidade dos Evangelhos e à presença do Cristo na Terra, encerram opinião pessoal do Autor, contagiado pelo espírito da época em que foram escritas e que, de certa forma, ainda hoje são objeto de controvérsia.

0 comentários :